O que os ultramoralistas não notaram em “Frozen”
Eu não ia escrever nada sobre o filme “Frozen”.
Não ia nem vê-lo no cinema, porque o atroz marketing americano me fez achar que fosse uma patética animação sobre um boneco de neve falante. Mas uma resenha positiva me fez perceber que havia muito mais do que isso. Minha esposa e eu acabamos indo ver. Dizer que nós “adoramos” seria insuficiente, já que as pessoas usam essa palavra muito gratuitamente hoje em dia. O fato é que talvez tenha sido a mais bela animação que já vimos em toda a nossa vida, incluindo as imagens e o som, da arquitetura do castelo de gelo até a música coral medieval.
Só então eu comecei a ver as coisas que as pessoas religiosas estavam escrevendo sobre o filme. Tem desde a teoria da conspiração gay até, num lado mais sóbrio, os que criticaram a música "Let It Go" por causa do seu individualismo egoísta. Mas depois da sexta crítica a "Let It Go", eu comecei a pensar que ninguém tinha captado o filme de verdade. Eu tinha que escrever alguma coisa, porque pelo menos duas coisas precisam ser ditas.
Antes, porém, quero recomendar a resenha de Greg Forster sobre o filme. Foi essa resenha que me levou a vê-lo. As animações da Disney, como se sabe, estão gradualmente deixando de existir: o pessoal da Pixar está acabando com a tradição questionável delas. John Lasseter, da Pixar, está hoje à frente da Disney Imagineering: é ele o produtor executivo de “Frozen”. Portanto, não cometa o erro de automaticamente vincular este filme à tradição de “filmes subversivos” da Disney.
"Tradição de filmes subversivos da Disney": vamos falar disso.
A primeira coisa que tem que ser dita é que os cristãos (em particular, mas não exclusivamente, os de uma certa facção fundamentalista) estão incomodados com os filmes da Disney já faz um bom tempo. A Pequena Sereia não usava roupas suficientes. O Corcunda de Notre Dame fazia as pessoas religiosas parecerem ruins. Pocohantas era panteísta. Muitos dos filmes tinham pessoas boas fazendo magia. E a lista segue… É claro que isso faz parte de outra tradição, ainda mais longa e mais ampla, de desejar muito mais a total ausência de coisas ruins em um filme do que a presença de coisas boas, o que é, em parte, a razão de os filmes cristãos serem quase todos puros, seguros e… péssimos.
A Disney fez os melhores filmes de animação de todos os tempos, praticamente eternos (dentro do que cabe na indústria cinematográfica) e estampou na mente das crianças uma grande gama de valores e boas lembranças. Mas há queixas legítimas dos pais, considerando-se que são filmes infantis que exercem a sua influência sobre jovens impressionáveis. De qualquer forma, como representante da Geração do Milênio, que cresceu vendo esses filmes, eu acho que os nossos pais ficaram incomodados com a maioria das coisas erradas e perderam totalmente de vista o modo como a Disney foi moldando os filhos deles. Enquanto mamãe e papai se preocupavam com coisas evidentes (Ariel se vestindo como uma sereia, um nativo americano reverenciando a natureza) ou que são próprias dos contos de fadas (a magia), a Disney foi instalando um sistema de valores dentro de nós que, aparentemente, era sutil demais para eles perceberem.
Quase todos os filmes de animação da Disney nos ensinaram durante décadas o mesmo princípio moral central: na maioria dos contextos, eles faziam parecer que "o amor é um sentimento que deve ser realizado a qualquer custo". Ou, em um nível mais fundamental: "seguir o seu coração é sempre a coisa certa a fazer". A Disney não transformou a maioria de nós em bruxos, panteístas ou nudistas, mas nos ensinou a não colocar nada acima dos nossos próprios desejos (e, para ser honestos, muitos dos nossos pais reforçaram essa lição).
Nós aprendemos bem a lição, como é evidenciado pela generalização do “ficar” com o máximo de parceiros, pela fobia do compromisso e pelos pontos de vista sobre as políticas públicas relativas ao casamento. Afinal, Ariel, Aladdin ou quem quer que fosse, com raras exceções, fizeram o que tinham vontade de fazer, perseguiram seus sonhos, seus interesses amorosos, e assim por diante. Queimaram vínculos. Rejeitaram seus pais. Abandonaram suas tradições e seu povo. E… viveram todos felizes para sempre.
Isso me leva à segunda coisa que precisa ser dita: com relação a estas questões, “Frozen” é o filme de animação mais anti-Disney que eu já vi.
Há nele uma grande mudança, talvez radical, em comparação com os filmes anteriores. Sim, a música "Let It Go" ainda soa bastante “Disney”: eu, eu, eu, e dane-se todo mundo. A personagem Anna decide que se apaixonou em quatro segundos e meio e se envolve em três minutos. Mas o filme não fica só nisso.
Todo o enredo do filme é construído em torno dos dois personagens principais que não aprendem as “lições de moralidade” da Disney.
Anna descobre quase imediatamente que seguir o coração sem pensar nas consequências pode ter consequências terríveis. E descobre, provavelmente no início de filme mais impressionante da tradição da Disney, que o seu "verdadeiro amor", seu sentimento, era absurdo, e que o amor de verdade consiste em "colocar as necessidades do outro na frente das minhas". Para martelar este ponto, o final surpreendente da história substitui todos os clichês dos contos de fadas da Disney por um ato digno de um conto de fadas real.
A menina que crescer com essas bonecas na sua cama em vez das antigas princesas da Disney terá um poderoso ponto de referência em sua imaginação sobre o que é (e o que não é) o amor. E este é precisamente o tipo de coisa que todo conto infantil deveria ensinar.
Quanto a Elsa e à canção "Let It Go", ela passa a primeira metade do filme escolhendo entre dois extremos. Na maior parte da sua vida, ela escolheu o primeiro: esconder seus poderes, para não causar danos. É o contrário do ponto de vista inicial de Anna: não amar nunca (ou pelo menos não demonstrar), porque, ao amar, as pessoas podem se machucar. Na canção, ela escolhe fazer o que quer. O resto do filme é o processo em que Elsa se confronta com uma terceira opção: aprender a canalizar o que ela pode fazer de bom pelos outros e aprender que o amor ajuda, em vez de apenas renunciar a machucar. Ser quem ela é não consiste em fazer o que ela quer, nem em forçar todo mundo a aceitá-la. Consiste em arcar com a responsabilidade de irmã e rainha, ganhando aceitação graças ao ato de doar-se e de usar os seus dons para espalhar alegria e beleza ao seu redor. Seu convite aos plebeus para entrarem no pátio real, no final do filme, é uma declaração poderosa: ela abriu o coração para as pessoas, compartilhando o que ela tem.
No fim das contas, é uma história com uma complexidade moral que destrói tudo o que a Disney já fez antes, entrando muito mais na tradição da Pixar (e, mesmo assim, é um filme acima da média).
Há pessoas que, em vez de só apontar defeitos, deixaram o filme falar por si mesmo. Eu acredito que elas viram o mesmo que eu vi: um filme que, durante 100 grandiosos minutos, nos faz pensar que talvez os grandes contos infantis não estejam mortos.