Sem a nunciatura de Pio Laghi na Argentina, Bergoglio dificilmente se tornaria Papa FranciscoPor Luis Badilla e Francesco Gagliano
Entre o núncio Pio Laghi e Jorge Mario Bergoglio, os aspectos imponderáveis da história teceram uma relação singular, a ponto de se poder apostar que, sem a nunciatura de Pio Laghi na Argentina, Bergoglio dificilmente se tornaria Papa Francisco.
Sabemos que se trata de uma hipótese, quase de uma espécie de sugestão histórica retrospectiva não demonstrável, mas, como vamos tentar provar, há nessa hipótese muitas circunstâncias, fatos, decisões e coincidências fortuitas que a tornam plausível e talvez muito provável.
Bergoglio em Córdoba: o noviciado e a escuridão interior
Pode-se dizer que tudo começou na cidade argentina de Córdoba, onde Bergoglio viveu em dois períodos diferentes, ambos fundamentais na sua vida: primeiro, como noviço jesuíta (1958-1960 aos 23 anos) e – 32 anos depois – quando era sacerdote, aos 54-55 anos (1990-1992), depois uma estadia na Alemanha, para onde ele havia se mudado em março de 1986. Dois anos inteiramente dedicados a ser confessor e diretor espiritual que Jorge Mario Bergoglioconsidera como um período de “purificação interior”, e que quase todos os biógrafos apresentam, em vez disso, como um “exílio silencioso”; “como uma noite, com alguma escuridão interior” (1).
Portanto, é difícil aferrar na sua completude e profundidade o percurso sacerdotal de Bergoglio se não levarmos em conta essas duas estadas cordobenses: o amadurecimento da vocação e a experiência da exclusão.
Bergoglio, desde cedo, muito jovem, se apaixonou por essa cidade, a quase 900 km a noroeste da capital Buenos Aires, no coração do país, e que ele percorreu a pé muitas vezes e que, como sempre disse, conhece tão bem quanto Buenos Aires. O padre Bergoglio, embora para estadias muito curtas, voltou várias vezes para Córdoba. Uma dessas suas visitas rápidas foi determinante na vida do futuro papa ou, melhor, talvez a mais decisiva.
Quarracino – Bergoglio
No fim dos anos 1980, Bergoglio, chamado de volta para Córdoba para conduzir um retiro espiritual, encontrou-se, pela primeira vez, com o então arcebispo de Buenos Aires, Dom Antonio Quarracino, que ficou fortemente impressionado com a personalidade do jesuíta, em particular com a franqueza e, ao mesmo tempo, com a profundidade das suas pregações.
Foi o momento em que, entre Quarracino e Bergoglio, criou-se uma importante parceria, a tal ponto que o purpurado de Buenos Aires pediria várias vezes ao Papa João Paulo II – encontrando também resistências – a nomeação de Bergoglio como seu auxiliar na diocese da capital. Por fim, no dia 20 de maio de 1992, João Paulo II aceitou o pedido de Quarracino e nomeou Jorge Mario Bergoglio como bispo auxiliar de Buenos Aires.
Evangelina Himitián, autora da primeira biografia do Papa Francisco, publicada logo depois da eleição de Jorge Mario Bergoglio, relata como Juan Carlos Camaño, professor de teologia da Universidade Católica Argentina (UCA), descreveu o primeiro encontro entre Quarracino e Bergoglio: “Eles se falaram e logo estabeleceram uma relação. O arcebispo deixou Córdoba pensando que tinha encontrado um talento”.
As resistências contra a nomeação de Bergoglio obrigaram Dom Quarracino a pedir, em 1992, uma audiência com João Paulo II que por ele tinha grande estima e consideração. Entretanto, como lembra Austen Ivereigh, Dom Quarracino insistia em dizer o que ele tinha transmitido ao prepósito geral da Companhia de Jesus: “A Igreja argentina espera grandes coisas do padre Bergoglio”.
Por outro lado, o núncio da época em Buenos Aires, Dom Ubaldo Calabresi (1924-2004), advertiu o padre Zorzin, provincial jesuíta, que, na sua opinião, a Igreja tinha uma missão para o padre Bergoglio. O padre Zorzin respondeu: “Quando for conferida uma missão para ele, ele irá aonde for necessário”.
Entre Dom Quarracino e Dom Bergoglio, vigário geral a partir 1993, estabeleceu-se uma sólida e produtiva relação pastoral e pessoal, embora se tratasse de duas pessoas e personalidades muito diferentes em inúmeros aspectos.
Porém, parece decisiva a relação de amizade e de confiança recíproca; daí o apelido de “el santito” (o santinho) que o arcebispo confiou ao seu vigário: sinal evidente da estima e do afeto de Quarracino por Bergoglio. Com isso, o arcebispo se referia à severidade, à austeridade e à disciplina de Dom Bergoglio, que muitos – embora em um ambiente ainda restrito – já descreviam quase como um “ermitão metropolitana”.
O percurso do cardeal Antonio Quarracino
Aqui, no entanto, é preciso dar um passo atrás nessa história singular. Antonio Quarracino, nascido em Salerno, em 1923, foi nomeado bispo por João XXIII no dia 3 de fevereiro de 1962 e, como professor do Nueve de Julio, participou de todas as sessões do Concílio Vaticano II e, depois, durante anos, foi um dos poucos bispos que, na Argentina, desempenharam o seu ministério no rastro dos ensinamentos conciliares.
No dia 7 de agosto de 1968, Paulo VI transferiu Dom Quarracino para a sede de Avellaneda. Depois de muitas e inteligentes colaborações com o Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM), Dom Quarracino, em 1978, foi escolhido secretário-geral desse órgão latino-americano e, em 1982, foi elevado a presidente desse Conselho até março de 1987.
A nomeação como secretário-geral também foi possível graças ao apoio do então núncio na Argentina, Dom Pio Laghi(nessa sede desde 1976), que sempre o sustentou no seu compromisso de coordenação eclesial-regional com entusiasmo e participação.
Esse “sucesso” pastoral em nível continental fez com que Quarracino obtivesse novas nomeações por parte de João Paulo II: como arcebispo de La Plata antes e, depois, no dia 10 de julho de 1990, de Buenos Aires e primaz da Argentina. Por fim, no dia 28 de junho de 1991, quando João Paulo II o elevou ao cargo de cardeal presbíteros, muitos lembraram que o neopurpurado sempre tivera em Pio Laghi um grande apoio.
Dentre outras coisas, no mesmo consistório, para criar 22 novos purpurados, João Paulo II criou cardeal o ex-núncio Pio Laghi. Portanto, à distância de alguns anos, os dois velhos amigos se encontraram como membros do Colégio Cardinalício no mesmo momento. Nessa ocasião, Quarracino diria a Pio Laghi: “Eu não estaria aqui se não fosse por você”.
Nesse ponto, podemos acrescentar que Jorge Mario Bergoglio não teria sido eleito arcebispo de Buenos Aires sem o pedido feito a João Paulo II por Antonio Quarracino, a quem ele sucedeu na qualidade de bispo coadjutor no dia 28 de fevereiro de 1998, no mesmo dia do seu falecimento (2).
Bergoglio e Laghi
Dom Laghi foi núncio em Buenos Aires de março de 1974 a dezembro de 1980. Naqueles anos, Jorge Mario Bergoglio foi provincial dos jesuítas da Argentina. Foi eleito no dia 31 de julho de 1973 e concluiu o seu compromisso em 1979.
A partir de inúmeras fontes e análises, fica claro que o provincial Bergoglio se relacionou o núncio Laghi, relações ligadas ao menos a duas questões: por um lado, assuntos humanitários de jesuítas envolvidos na rede repressiva dos militares, que não alimentavam nenhuma simpatia ou deferência pela Companhia de Jesus, e, depois, a crise que, naqueles anos, atingia seriamente os seguidores de Santo Inácio.
Sobre essas relações, por enquanto, não se encontram testemunhos diretos ou documentos. Na imprensa argentina, ocasionalmente, alguns falavam de “relações difíceis”, enquanto outros escreviam o contrário. Sobre o caso, encontram-se informações nos livros biográficos de mais autoridade sobre o padre Bergoglio, e não existem posicionamentos públicos do futuro papa sobre a figura do núncio Pio Laghi.
O que se encontra diz respeito, em vez disso, ao núncio anterior, Dom Ubaldo Calabresi, sobre o qual Bergoglio fala com Sergio Rubin e Francesca Ambrogetti: “(Calabresi) me chamava para pedir informações sobre sacerdotes que talvez fossem candidatos ao episcopado. Um dia, ele me chamou e me disse que queria me encontrar, mas, desta vez, para uma questão pessoal”.
Por motivos logísticos, os dois se encontraram no aeroporto de Córdoba, e Bergoglio lembra: “Falamos no dia 13 de maio de 1992. Ele fez uma série de perguntas sobre questões comprometedoras e só quando ele estava prestes a tomar o avião que o levaria de volta para Buenos Aires ele me disse: ‘Ah, uma última coisa: você foi nomeado bispo auxiliar de Buenos Aires, e a sua nomeação será publicada no dia 20…’ Eu fiquei petrificado”.
Nesse ponto, concluindo a nossa sugestão retrospectiva, pode-se dizer que o elo de conjunção entre Pio Laghi e Jorge Mario Bergoglio é, obviamente, Dom Quarracino. Este se tornou arcebispo de Buenos Aires também porque o núncio Laghi sustentou o seu percurso rumo à experiência do Celam, que seria determinante para a sua relação com João Paulo II e, portanto, para a sua nomeação como primaz argentino e ordinário de Buenos Aires.
Se isso não tivesse acontecido, parece evidente que Jorge Mario Bergoglio jamais teria sido sucessor do cardeal Antonio Quarracino.
Notas:
1. Declarações recolhidas no livro Aquel Francisco (Raíz de Dos), de Javier Cámara e Sebastián Pfaffen. “Os meus anos em Córdoba determinaram, de alguma maneira, uma solidez espiritual. Porque eu fui como noviço, primeiro, e, depois, esses dois anos que eu estive ali sendo padre, entre 1990 e 1992, que foram como uma noite, com alguma escuridão interior, também permitiram que eu fizesse o meu trabalho apostólico que me ajudou a me consolidar como pastor”.
2. O arcebispo Jorge Mario Bergoglio foi criado cardeal também por João Paulo II no consistório de 21 de fevereiro de 2001.
(IHU)