O Cântico dos Cânticos é o poema do amor que oferece ao leitor a imagem de dois jovens apaixonadosSe quiséssemos vasculhar um coração, entre as páginas da Bíblia, provavelmente não passariam despercebidas as relativas ao Cântico dos Cânticos, que já o título a língua hebraica traduz como um superlativo de excelência. Uma obra composta por oito capítulos que relata o amor, humano e divino, guardado no coração de cada criatura.
“Um livro pouco usado na liturgia – afirmava Christian de Chergé –, nunca lido aos domingos, uma única vez durante a semana, no Advento – mas também é facultativo –, como se tivéssemos um pouco de medo dele. Ele aparece duas vezes em dois dias de festa (para Santa Maria Madalena e São Bernardo). São, portanto, duas leituras de dias de memória. E, depois, dois trechos foram escolhidas para as missas votivas das profissões religiosas e para a consagração das virgens e também para o matrimônio.”
A partir dessas considerações, as Edizioni Messaggero de Pádua recentemente publicaram “Meditações sobre o Cântico dos Cânticos”, de Christian de Chergé (1937-1996), prior da abadia trapista de Tibhirine, na Argélia, sequestrado e morto por um grupo terrorista com outros seis outros monges, em maio de 1996.
Trata-se de um curso de exercícios espirituais pregados pelo religioso trapista às Irmãzinhas de Jesus em Mohammedia, uma cidade portuária do Marrocos, em novembro de 1990, com a intenção principal de comentar alguns textos do Cântico dos Cânticos, associando-os às “cartas às Igrejas” que se encontram nos capítulos dois e três do Apocalipse.
O texto – editado por Christian Salenson, sacerdote da diocese de Nîmes, membro do Instituto de Teologia e Religião de Marselha e diretor da revista Cammini del Dialogo – se apresenta na forma de sete encontros. Cada encontro (cada um dos quais conclui com propostas de meditação) é organizado em torno de um “grito” da esposa, assim como encontramos no Cântico dos Cânticos: “Beije-me”, “Arraste-me com você”, “Levante-se”, “Retorne”, “Abra-me”, “Volte-se, volte-se”, “Ponha-me como um selo”.
As meditações de Christian de Chergé contribuem para redescobrir a beleza de um texto vetero-testamentário altamente poético, cheio de intuições e imagens que lançam luz sobre o mistério do ser humano, como criatura amada por Deus.
Na apresentação do texto, afirma-se: “Contrariamente à ideia corrente de que esse gênero literário deve ser reservado para poucos – monges, religiosos ou padres – especialistas em mística, pensamos que hoje, para viver no mundo como fiéis, os cristãos, tanto padres quanto leigos, precisam se saciar nas fontes vivas da tradição espiritual”.
O Cântico dos Cânticos é o poema do amor que oferece ao leitor a imagem de dois jovens apaixonados, também através do paradigma da corporeidade. É interessante, a esse respeito, o comentário de Christian de Chergé ao primeiro versículo do Cântico: “Beije-me com os beijos da sua boca”, que poderiam parecer – como, aliás, grande parte das imagens presentes no Cântico – até mesmo ousado.
“A eucaristia – afirma o autor – nos ensina que todo o corpo é sacramento. Por isso, não há nada de vulgar naquilo que o corpo é, diz ou faz. Abramos a Bíblia. Há o beijo de Maria Madalena, que escandaliza os judeus. Nós também podemos estar do lado daquela que dá o beijo ou do lado daqueles que se escandalizam, ou talvez também do lado daquele que recebe o beijo. Há o beijo de Judas. O beijo de Judas é um beijo destinado a encerrar uma história de amor, enquanto que, por si só, o beijo seria feito para abrir e para estipular um pacto de amor. […] Ao beijo de Judas respondeu o beijo de Jesus que parece lhe dizer: não é você que pode fechar, com sua iniciativa, a seu modo, uma história que o meu Pai começou e que Eu quero continuar. […] Na Trindade, o Espírito é o beijo do Pai ao Filho, e do Filho ao Pai. No comentário talmúdico à morte de Moisés, há uma expressão magnífica. Diz-se que, quando Moisés se pôs nas mãos de Deus, no limiar da Terra Prometida na qual ele não poderá entrar – porque a única terra prometida em que ele pode entrar é outra – Deus vem, se estende sobre Moisés e, com um beijo, aspira-lhe a alma. Deus retoma em si o que lhe deu ao criá-lo. Se a morte pudesse ser simplesmente assim, seria bonito!”
O texto publicado pela Messaggero de Pádua oferece um comentário à literatura espiritual do Cântico dos Cânticosacessível a todos e de grande atualidade. O Papa Bento XVI, na encíclica Deus caritas est, dizia: “Como deve ser vivido o amor, para que se realize plenamente a sua promessa humana e divina? Podemos encontrar uma primeira indicação importante no Cântico dos Cânticos, um dos livros do Antigo Testamento bem conhecido dos místicos. Segundo a interpretação hoje predominante, as poesias contidas nesse livro são originalmente cânticos de amor, talvez previstos para uma festa israelita de núpcias, na qual deviam exaltar o amor conjugal”.
Por Michelangelo Nasca, no Vatican Insider
(IHU)