“Não é o pastor que deve dizer ao leigo o que ele deve fazer e dizer, ele o sabe tanto ou melhor do que nós”O clericalismo é “uma das maiores deformações” que a Igreja deve enfrentar na América Latina: é o Papa Franciscoquem escreve isso em uma carta enviada ao cardeal Marc Ouellet, presidente da Pontifícia Comissão para a América Latina e o Caribe, ressaltando que o clericalismo “vai apagando pouco a pouco o fogo profético de que toda a Igreja é chamada a dar testemunho no coração dos seus povos”.
Para o pontífice argentino, “geramos uma elite laical acreditando que são leigos comprometidos apenas aqueles que trabalham em coisas ‘dos padres’ e esquecemos, ignorando-o, o fiel que muitas vezes queima a sua esperança na luta cotidiana para viver a fé”. Além disso, “não é o pastor que deve dizer ao leigo aquilo que ele deve fazer e dizer” na vida pública.
“Evocar o Santo Povo fiel de Deus é evocar o horizonte ao qual somos convidados a olhar e a partir do qual somos chamados a refletir”, escreve o papa na carta enviada ao cardeal Ouellet, depois que, no último dia 4 de março, o próprio Francisco tinha se encontrado com os participantes da assembleia plenária desse órgão, dedicada ao tema do ”indispensável compromisso dos fiéis leigos na vida pública dos países latino-americanos”.
Isso “nos ajuda a não cair em reflexões que podem, por si sós, ser muito boas, mas que acabam homologando a vida da nossa gente ou teorizando a tal ponto que a especulação acaba matando a ação. Olhar continuamente para o Povo de Deus nos salva de certos nominalismos declaracionistas (slogans) que são frases bonitas, mas que não conseguem sustentar a vida das nossas comunidades. Por exemplo, eu recordo agora a famosa frase: ‘É a hora dos leigos’, mas parece que o relógio parou”.
Além disso, “ninguém foi batizado padre nem bispo. Fomos batizados leigos, e esse é o sinal indelével que nunca ninguém poderá apagar”.
Citando o documento Lumen gentium do Concílio Vaticano II, em seguida, o papa continua: “Não podemos refletir sobre o tema do laicato ignorando uma das maiores deformações que a América Latina deve enfrentar – e à qual peço a vocês que dirijam uma atenção particular –, o clericalismo”, que “leva a uma homologação do laicato; tratando-o como ‘mandatário’, limita as diversas iniciativas e esforços, e, ousaria dizer, as audácias necessárias para poder levar a Boa Nova do Evangelho a todos os âmbitos da atividade social e, sobretudo, política. O clericalismo, longe de dar impulso às diversas contribuições e propostas, vai apagando pouco a pouco o fogo profético de que toda a Igreja é chamada a dar testemunho no coração dos seus povos”.
O papa cita, como exemplo positivo de “um dos poucos espaços em que o Povo de Deus foi liberto da influência do clericalismo” na América Latina, a “pastoral popular”, além do Paulo VI da Evangelii nuntiandi sobre a religiosidade popular: “Confiamos no nosso Povo, na sua memória e no seu ‘olfato’, confiamos que o Espírito Santo age nele e com ele, e que esse Espírito não é só ‘propriedade’ da hierarquia eclesial”.
Consequentemente, a propósito dos leigos que trabalham na vida pública, especialmente em um contexto de “cultura do descarte” presente em muitas cidades, os pastores devem “buscar o modo para poder encorajar, acompanhar e estimular todas as tentativas e os esforços que hoje já são feitos para manter vivas a esperança e a fé em um mundo repleto de contradições, especialmente para os pobres, especialmente com os mais pobres”.
Nesse sentido, “não é o pastor que deve dizer ao leigo o que ele deve fazer e dizer, ele o sabe tanto ou melhor do que nós. Não é o pastor que deve estabelecer o que os fiéis devem dizer nos diversos âmbitos. Como pastores, unidos ao nosso povo, faz-nos bem nos perguntar como estamos estimulando e promovendo a caridade e a fraternidade, o desejo do bem, da verdade e da justiça. Como fazemos para que a corrupção não se aninhe nos nossos corações”.
Muitas vezes, continua Francisco, “sem nos darmos conta, geramos uma elite laical acreditando que são leigos comprometidos apenas aqueles que trabalham em coisas ‘dos padres’, e esquecemos, ignorando-o, o fiel que muitas vezes queima a sua esperança na luta cotidiana para viver a fé. São essas as situações que o clericalismo não pode ver, porque está mais preocupado em dominar espaços do que em gerar processos. Portanto, devemos reconhecer que o leigo, pela sua realidade, pela sua identidade, por estar imerso no coração da vida social, pública e política, por ser partícipe de formas culturais que são geradas constantemente, precisa de novas formas de organização e de celebração da fé”.
Para Francisco, “é ilógico, e até mesmo impossível, pensar que nós, como pastores, devemos ter o monopólio das soluções para os múltiplos desafios que a vida contemporânea nos apresenta. Ao contrário, devemos ficar do lado da nossa gente, acompanhando-a nas suas buscas e estimulando aquela imaginação capaz de responder à problemática atual. E isso discernindo com a nossa gente, e nunca pela nossa gente ou sem a nossa gente. Como diria Santo Inácio, ‘segundo as necessidades de lugares, tempos e pessoas’. Ou seja, não uniformizando. Não é possível dar diretrizes gerais para organizar o povo de Deus dentro da sua vida pública”.
A necessária “inculturação” da fé “é um trabalho artesanal, e não uma fábrica para a produção em série de processos que se dedicariam a ‘fabricar mundos ou espaços cristãos'”.
Em particular, para o papa, é preciso “conservar duas memórias”, a de Jesus Cristo e a dos nossos antepassados, para evitar que um leigo seja “erradicado” da fé e do “Santo Povo fiel de Deus”: “O mesmo acontece conosco quando nos erradicamos como pastores do nosso povo, nos perdemos. O nosso papel, a nossa alegria, a alegria do pastor, está justamente em ajudar e em estimular, como muitos fizeram antes de nós, mães, avós e pais, os verdadeiros protagonistas da história. Não por uma nossa concessão de boa vontade, mas por direito e estatuto próprio. Os leigos fazem parte do Santo Povo fiel de Deus e, portanto, são os protagonistas da Igreja e do mundo; nós somos chamados a servi-los, não a nos servir deles”.
Iacopo Scaramuzzi
(IHU)