Sua inteireza viril atrai invejas, mas, principalmente, o respeito e a admiração tanto de colegas quanto de superioresO mundo do entretenimento sempre foi temperado de violência e sexo. A arte também. Até aí, nada de novo, mas, convenhamos: algumas séries de TV fazem uso disso sem justificativa que não seja a de atrair público. Se fosse gastar esse primeiro pedaço do texto listando todas as séries que usam sexo e violência como chamariz e não como recursos importantes do desenvolvimento de suas histórias, faltaria espaço.
Mas há séries que fogem desse padrão – e uma delas é a britânica Downton Abbey. Se você nunca assistiu, recomendo que comece o mais rápido possível.
A história de Downton Abbey gira em torno dos Crawley, uma família aristocrática inglesa no começo do século XX que enfrenta um dilema: manter a tradição ou ceder à modernidade. Esse dilema é a linha-mestra da série e envolve tanto os membros da família aristocrática quanto o seu pequeno exército de empregados. Apesar do aparente clima de telenovela, as personagens e a história são muito bem construídas, profundas e incrivelmente humanas.
Meu personagem preferido é John Bates, valete, ou serviçal pessoal, de Robert Crawley, o Conde de Grantham. Mr. Bates, como é comumente chamado tanto pela família Crawley quanto por seus colegas, servira ao conde na Guerra dos Bôeres, ocasião em que um ferimento na perna direita o deixou coxo. Desde que chegou à residência do conde, Bates passou por muitos percalços e situações que ameaçaram sua dignidade, sua honra e até sua vida.
Particularmente me impressiona a maneira como Mr. Bates se mostra, em toda e qualquer situação, um verdadeiro cavalheiro. Ao sofrer acusações caluniosas de colegas de serviço, ele não usa a mesma arma e evita até mesmo alimentar privadamente qualquer rancor. Chantageado, afasta-se da família do conde e daqueles que lhe são queridos para impedir que sejam atingidos. Em todas as ocasiões em que é vítima de uma injustiça ou em que tentam atingir as pessoas importantes para ele, Mr. Bates não mede esforços nem sacrifícios para protegê-los e assumir integralmente os danos.
A hombridade de Mr. Bates se manifesta sobretudo em detalhes de seu comportamento — voz sólida, olhar direto, gestos firmes, cordialidade e espírito de serviço. Não nega ter defeitos, nem pretende parecer um sujeito impecável, mas, admitindo suas más inclinações, mostra que luta contra elas. Carecendo da nobreza de sangue, não lhe falta uma nobreza de espírito verdadeiramente viril. Analisando essa personagem, não consigo deixar de pensar em um aforismo que Baltasar Gracián, jesuíta espanhol do século XVII, escreveu em “A Arte da Prudência”:
Nunca perder o respeito por si mesmo, nem ter por que corar a sós. Que a inteireza seja a norma de sua retidão, e deva mais à severidade de seus ditames que a todos os preceitos extrínsecos. Deixe de fazer o que é indecente mais por temor à sua própria cordura que pelo rigor da autoridade alheia. Chegue a temer-se, e não precisará mais de Sêneca como preceptor imaginário.
A compostura de Mr. Bates não deixa de atrair a inveja de algumas pessoas de seu convívio, mas atrai muito mais respeito e admiração, tanto de colegas quanto de superiores — ao ponto de o próprio Conde de Grantham se dirigir a ele como a um irmão de armas. Encontrar uma personagem como essa em qualquer série de entretenimento, em que roteiros rasos e histórias malfeitas estrangulam a imaginação moral, é raro e digno de nota.
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Felipe Melo, via blog Modéstia Masculina