Entrevista com Paolo Ricca sobre o diálogo entre católicos e protestantesPor Cristina Uguccioni
No próximo dia 31 de outubro, o Papa Francisco vai viajar para Lund, na Suécia, e vai participar da cerimônia conjunta luterano-católica para comemorar o 500º aniversário da Reforma. Como se lê no comunicado redigido pela Federação Luterana Mundial e pelo Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, “o evento pretende evidenciar os 50 anos de contínuo diálogo ecumênico entre católicos e luteranos e os dons resultantes dessa colaboração. A comemoração gira em torno dos temas da ação de graças, da penitência e do compromisso no testemunho comum. O objetivo é expressar os dons da Reforma e pedir perdão pela divisão perpetuada pelos cristãos das duas tradições”.
Na iminência desse acontecimento, dirigimos algumas perguntas a Paolo Ricca, 80 anos, teólogo e pastor valdense, professor emérito da Faculdade Valdense de Teologia e professor convidado do Pontifício Ateneu Sant’Anselmo de Roma. Generosamente comprometido com o diálogo ecumênico há décadas, ele dirige uma coleção de obras escolhidas de Lutero para a editora Claudiana de Turim.
Que significado tem a participação do Papa Francisco na comemoração de Lund?
Eu considero a sua participação como um fato muito bonito, importante. Acima de tudo, porque é a primeira vez que um papa comemora a Reforma. Isso, na minha opinião, é um passo à frente em relação aos marcos significativos que foram alcançados com o Concílio Vaticano II, que – incluindo nos seus textos e, assim, valorizando alguns princípios e temas fundamentais da Reforma – marcou uma virada decisiva nas relações entre católicos e protestantes. Participar na comemoração, como o sumo representante da Igreja Católica se prepara para fazer, significa, na minha opinião, considerar a Reforma como um evento positivo na história da Igreja, que também fez bem ao catolicismo. A participação na comemoração é um gesto de grande relevância, até porque o papa se dirige para Lund, na casa dos luteranos, como se fosse alguém da família. A minha impressão é de que ele, de um modo que eu não saberia definir, também se sente parte daquela porção de cristandade que nasceu da Reforma.
Qual foi e poderá ser, no futuro, a contribuição do Papa Francisco para o caminho rumo à unidade dos cristãos?
Parece-me que a principal contribuição oferecida por ele em vista da unidade é o seu esforço de reinventar o papado, ou seja, a busca de um modo novo e diferente de entender e viver o ministério do bispo de Roma. Essa busca – supondo que a minha leitura acerta, ao menos um pouco, no alvo – poderia levar muito longe, porque o papado – pelo modo em que foi entendido e vivido nos últimos 1.000 anos – é um dos grandes obstáculos para a unidade dos cristãos. Parece-me que o Papa Francisco está se movendo para um modelo de papado diferente do tradicional, em relação ao qual as outras Igrejas cristãs poderiam assumir posições novas. Se assim for, esse tema poderia ser completamente repensado em âmbito ecumênico.
Quais foram as passagens mais significativas do diálogo católico-luterano realizada nos últimos 50 anos?
Houve acordos muito importantes: acima de tudo, a “Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação”, que remonta a 1999, na qual aparece também a criação de uma nova fórmula de entendimento ou de pacto entre as Igrejas, o “consenso diferenciado”, que eu considero particularmente interessante. Essa expressão significa que se chegou a um acordo sobre os fundamentos da doutrina e que, ao mesmo tempo, permanecem diferenças que, no entanto, não afetam a realidade do acordo alcançado sobre esse tema específico. Infelizmente, porém, esse acordo ainda não trouxe os frutos que muitos esperavam, provavelmente porque, enquanto para os luteranos a doutrina da justificação pela fé é a estrela-guia que molda e guia toda a visão da relação entre Deus e o ser humano, ela não possui um papel tão central no catolicismo.
Houve outros acordos significativos, por exemplo o da Eucaristia, embora ele não tenha produzido mudanças substanciais, tanto que hoje, oficialmente, a Igreja Católica(assim como as Igrejas ortodoxas) não autoriza a hospitalidade eucarística aos protestantes, embora, na realidade, muitas vezes ela seja praticada. Sem dúvida, o clima novo que foi criado ao longo dos últimos 50 anos tem um grande valor: não estamos mais “uns contra os outros armados”, mas há um intercâmbio bonito, a partilha em comum dos dons que cada um pode ter recebido de Deus e dos problemas que, como Igreja, devemos enfrentar na presença dos muitos dramas da sociedade atual e do fenômeno de uma secularização galopante.
O senhor acha que os dramas, as dificuldades e os sofrimentos dos homens e das mulheres do nosso tempo podem constituir um estímulo, uma solicitação para a recomposição da unidade?
As circunstâncias históricas podem solicitar e favorecer um caminho mais rápido para a unidade: prova disso são algumas iniciativas que protestantes e católicos promoveram juntos para enfrentar, unidos, os problemas da contemporaneidade. No entanto, eu penso que, se a comunhão não nascer da fé, da esperança e do amor (ou seja, das realidades espirituais profundas que constituem o núcleo do cristianismo), ela vai acabar sendo fraca ou desmoronando quando os problemas que a suscitaram forem resolvidos. Por isso, é preciso trabalhar com paciência sobre a dimensão espiritual, porque só desse modo é possível construir uma comunhão duradoura.
No continente europeu, quais são, na sua opinião, as iniciativas mais interessantes lançadas em conjunto por católicos e protestantes?
Entre as iniciativas mais significativas, estão os Conselhos das Igrejas Cristãs que, na Itália, foram constituídos em algumas cidades, por exemplo em Milão e em Veneza. Esses conselhos, dos quais fazem parte representantes das diversas Igrejas cristãs, se encontram periodicamente e atuam de muitos modos e em muitas frentes. Em alguns países (não na Itália), também existem os Conselhos Nacionais das Igrejas Cristãs: eu acho que essa é a iniciativa mais relevante, assim como os encontros promovidos pela Conferência das Igrejas Europeias (que reúne as Igrejas protestantes e ortodoxas) e pelo Conselho das Conferências Episcopais Católicas da Europa. Esses dois órgãos organizaram assembleias comuns de grande interesse e valor ecumênico. Eu participei de dois encontros, em Basileia e em Graz. Todo o cristianismo europeu se encontrou reunido. Tenho uma recordação muito bonita deles.
Na sua opinião, os fiéis católicos e protestantes sentem a divisão da Igreja como uma ferida?
Em geral, eu diria que não. Em todas as Igrejas, o tema da unidade dos cristãos é sentido apenas por algumas minorias. A divisão é uma ferida grave, uma infidelidade objetiva da qual poucos têm consciência real. A maioria dos cristãos considera-a simplesmente um fato desprovido de consequências reais sobre a sua vida de fé. Mas as consequências existem. Quando os cristãos de confissões diferentes vivem uns ao lado dos outros, sem ter nem buscar qualquer relação entre eles, isso significa que eles se sentem cristãos autossuficientes, que bastam a si mesmos para realizar a plenitude do cristianismo. Essa é uma ilusão! O cristão não é e nunca pode se considerar autossuficiente. Aqui somos socorridos pela belíssima parábola do corpo de Cristo proposta por São Paulo na Primeira Carta aos Coríntios (12, 12-26). Assim como o olho precisa da mão, e a cabeça, dos pés, assim também cada cristão precisa não só do outro semelhante a si mesmo, mas também daquele que é diferente de si mesmo: essa diversidade é manifestação da obra do Espírito, que suscita multiplicidade e variedade de dons. O cristianismo é um fato plural, e, nesse sentido, a multiplicidade e diversidade das Igrejas é algo normal. O que é anormal é a divisão. A diversidade é cristã, a divisão, não. Portanto, é preciso superar a divisão sem apagar a diversidade.
No documento “Do conflito à comunhão”, redigido pela Comissão Internacional Católico-Luterana em 2013, afirma-se: “Em 2017, devemos confessar abertamente que somos culpados diante de Cristo por termos rompido a unidade da Igreja. Este ano jubilar nos apresenta dois desafios: a purificação e a cura das memórias, e a restauração da unidade dos cristãos de acordo com a verdade do Evangelho de Jesus Cristo”. De que forma o senhor acha que esses compromissos vão se traduzir?
Eu não saberia dizer como esses compromissos poderão se traduzir nos países individuais. Certamente, são objetivos que não serão alcançados dentro de um ano: trata-se de processos que levarão décadas. A “purificação da memória” é uma passagem sobre a qual devemos nos entender: purificar não significa esquecer o passado, nem domesticar a história, mas relê-la juntos. Essa operação é uma operação nova e indispensável, porque, até hoje, católicos e protestantes a releram cada um por conta própria. Em relação à unidade da Igreja, eu acho que o passo decisivo ou, melhor, a premissa necessária para qualquer outro passo é o reconhecimento – por parte da Igreja Católica e das Igrejas ortodoxas – das comunidades protestantes como Igrejas de Jesus Cristo, e não só como “comunidades eclesiais”, para usar a expressão do Concílio Vaticano II. Essa falta de reconhecimento é, para todos nós, filhos da Reforma, uma ferida dolorosa.
Com que sentimentos o senhor se prepara para viver a comemoração da Reforma?
Eu tenho 80 anos. Acima de tudo, sou grato a Deus por ter chegado a este encontro. Eu considero que a Reforma foi uma bênção para muitos: para nós, mas também para todo o cristianismo e para a Igreja Católica. Eu acho que dificilmente – sem a Reforma – o catolicismo teria sido capaz de formular um projeto de reforma própria: o Concílio de Trento não produziu apenas a Contrarreforma, mas também a reforma tout court. Eu comemoro e celebro esse aniversário porque a Reforma deu origem a um novo tipo de cristianismo, a um repensamento original da fé: não foi uma reforma da existente, mas a criação de uma nova articulação do fenômeno cristão, que conservou o seu coração antigo, o coração bíblico. A Reforma criou um novo modelo de Igreja cristã e um novo modo de se situar, como Igreja, na sociedade. Também poderíamos falar, sem cair na retórica hagiográfica, de uma nova civilização. Se eu olho para o futuro do diálogo ecumênico, eu sou otimista: não nos homens ou nas Igrejas, mas em Deus, porque Ele fez maravilhas nesses últimos 50 anos. O grande problema a ser resolvido continua sendo, na minha opinião, o do poder, que ninguém quer perder. Será preciso repensar o poder na Igreja, nas Igrejas e entre as Igrejas.