O início de uma série de artigos iluminadores para aprofundar em um dos elementos constitutivos mais fascinantes da natureza humanaEntre 1979 e 1984, ao longo de muitas quartas-feiras, o amado Papa São João Paulo II dedicou-se a um belíssimo projeto: esclarecer aos fiéis e ao mundo, solidamente e em definitivo, qual é realmente a doutrina católica a respeito do corpo e da sexualidade do ser humano. Para isso, fundamentou-se nas Escrituras e em toda a Tradição Apostólica e dos Padres da Igreja, desde o cristianismo primitivo. Foram mais de uma centena de catequeses, nas quais tratou do assunto em profundidade, com brilhantismo e admirável rigor filosófico e teológico. A presente série de artigos oferecerá uma introdução a estas catequeses, que foram publicadas sob o título de Teologia do Corpo.
Prólogo para uma introdução à Teologia do Corpo
Antes mesmo de tocarmos nos conceitos específicos do projeto teológico de São João Paulo II, para “preparar o terreno”, é conveniente expor um pouco da intrínseca e inevitável relação de toda autêntica teologia católica com a realidade do corpo.
Após a Anunciação, o Espírito Santo gerou o Filho no ventre de Maria, a Santíssima Virgem. Jesus Cristo é Deus encarnado. Sua missão espiritual é marcada por uma forte corporeidade. Contemplemos a Paixão de Cristo: a agonia no Horto das Oliveiras, a flagelação, a coroa de espinhos, o carregamento da Cruz, a crucifixão, a lança que faz jorrar sangue e água de seu flanco, e também a Sua Ressurreição: “Vede minhas mãos e meus pés: sou eu mesmo! Tocai-me e vede, porque um espírito não tem carne nem ossos, como estais vendo que eu tenho” (Lc 24,39).
Cristo, em sua missão, era um Sacramento Vivo. Pensemos na mulher hemorroíssa, que curou-se ao tocar somente as vestes de Jesus… Um pedaço de tecido, que protegia o Corpo de Deus. Tantos milagres similares relatados na vida dos Santos – pelas luvas que cobriam as chagas de Padre Pio, pelo lenço com o qual o mesmo enxugava as lágrimas que derramava na Celebração Eucarística. Pois Cristo, Ressuscitado, permanece Vivo na realidade sacramental de sua Igreja, Seu Corpo Místico. Pois Cristo Se doa inteiramente, até o fim dos tempos, em Espírito e em Corpo, à Igreja, Sua Esposa. Apenas aguardando nossa inteira doação, como membros da Igreja, para nos cumular de graças, e tornar-nos participantes de Sua Encarnação, Paixão, e Gloriosa Ressurreição.
Nós, católicos, não somos espiritualistas.
Quem quer que pense o oposto, dentro ou fora da Igreja, pensa em território longínquo ao depósito da fé cristã, e, sabendo ou não, foi fisgado pelas heresias gnósticas, que consideram o corpo e a matéria como essencialmente maus, e o espírito, exclusivamente, como bom. Não há nada mais distante da fé católica do que a consideração do corpo como mau. Pois, antes de mais nada, não é o corpo que peca, como alguns podem pensar; mas o espírito decaído.
Os animais de outras espécies, que não têm alma nem liberdade, não pecam. Mas os demônios, seres espirituais, pecam a todo instante. Nós, seres humanos, é por termos alma e sermos livres que podemos pecar, e cair na escravidão. Somos livres para sustentar nossa liberdade; ou para abrir mão dela, trocando nosso direito de primogenitura por um prato de lentilhas (Gn 25, 34). A queda da alma humana, no Pecado Original, assim como todo pecado atual, é o que tira de nós a essencial integração de nossos corpos e almas, e instaura em cada homem um conflito entre os impulsos da carne, e uma alma a estes sujeitada – ferida, desorientada, resistente ao Espírito.
Não somos espiritualistas, e, portanto, para sermos autenticamente católicos, precisamos rejeitar toda sorte de gnosticismo. Certamente, como veremos melhor nos próximos artigos, nós desejamos a “vida conforme o Espírito”, e não conforme à carne. Mas isso não quer dizer que gostaríamos de nos desfazer de nossos corpos, para uma afirmação exclusiva de nossos espíritos. Ao contrário, significa que queremos precisamente a espiritualização dos nossos corpos enquanto tais. E isto “significa não somente que o espírito dominará o corpo, mas, diria, que ele penetrará inteiramente no corpo, e que as forças do espírito penetrarão nas energias do corpo” (Teologia do Corpo, 67,1).
Como disse São Paulo aos Coríntios: “Sim, nós que moramos na tenda do corpo estamos oprimidos e gememos, porque, na verdade, não queremos ser despojados, mas queremos ser revestidos, de modo que o que é mortal, em nós, seja absorvido pela vida.” (2 Cor 5,4).
Queremos um corpo espiritualizado, repleto e pleno da Presença, da Graça e da Glória do Espírito Santo, do Deus Vivo, fonte e origem de toda a vida. “Sois vós, ó Senhor, o meu Deus! Desde a aurora ansioso vos busco! A minh’alma tem sede de vós, minha carne também vos deseja, como terra sedenta e sem água!” (Sl 62,2). Que mais é o próprio Corpo de Cristo, Deus feito Homem, que contemplamos com imensa adoração, e que recebemos em nossos corpos e almas no Santíssimo e Diviníssimo Sacramento da Eucaristia? Um Corpo pleno do Espírito, consubstancial ao Pai, que Se entregou e Se entrega por nós, e que nos revelou o Caminho, que é Ele mesmo: peguemos nossa cruz e O sigamos; entreguemo-nos em sacrifício por Deus e pelo próximo; pois esse é o Caminho da Vida e, com a Vida, o fardo será leve, o jugo será suave. Essa é a realidade fundamental na qual tocou todo mártir, e todo cristão autêntico, alimentado do viço do martírio, pela fé viva e pela graça do Espírito Santo: é melhor morrer pela Vida, sacrificar-se para ganhá-La, do que viver pela morte.
Quando vivemos a eficácia Eucarística da Igreja de Cristo, imediatamente mostra-se sem sentido, por exemplo, uma doutrina luterana como a da sola fides, pois, como poderia bastar uma fé em Cristo que se dissociasse da totalidade da Sua Revelação? Não seria completa fé. Pois a Revelação inclui a entrega sacramental do Seu Corpo e do Seu Sangue, os quais, pela fé católica, desejamos mais que tudo, e os quais, pelo Santíssimo Sacramento, efetivamente temos.
Não porque pedimos demais de Cristo, mas porque Ele mesmo quis e quer que comamos do Seu Corpo e que bebamos do Seu Sangue, conforme o sacramento que instituiu com seus apóstolos na noite de Sua Paixão, para que o repetíssemos até o fim dos tempos. Portanto, se temos a fé, somos obedientes a Cristo, cremos Nele e também em tudo o que Ele disse, sem nenhuma exceção: “Pois minha carne é verdadeiramente comida e meu sangue é verdadeiramente bebida.” (Jo 6,55). Isto disse Cristo, para que ninguém depois pudesse dizer que tudo não passou de uma metáfora. Na Santa Missa, oramos, mas também pedimos a Jesus, como Ele mesmo, Ressuscitado, pediu aos apóstolos: “Tendes aqui alguma coisa para comer?”. Sim, a Eucaristia, Corpo e Sangue de Cristo, é o maná que chove dos céus todos os dias para a sobrevivência e salvação da humanidade no exílio deste mundo desertificado pelo pecado. “O Senhor disse a Moisés: ‘Vou fazer chover pão do alto do céu. Sairá o povo e colherá diariamente a porção de cada dia. Pô-lo-ei desse modo à prova, para ver se andará ou não segundo minhas ordens.” (Ex 16,4). Éramos mendigos espirituais, nus, famintos e sedentos, e prisioneiros do pecado; o Verbo de Deus nos visitou, para nos libertar; Jesus veio para nos dar, eternamente, de comer e de beber, e para nos vestir. Ele apenas espera que consintamos com a salvação, que O procuremos, pois Ele jamais nos forçaria a comer, a beber, jamais nos vestiria à força. É preciso abrir a boca, levantar os braços, acolher as ordens salvíficas de Nosso Senhor.
A mentalidade esotérica da “Nova Era”, por exemplo, poderá pensar a frase em que falamos de um “corpo espiritualizado”, como referindo-se a um corpo que de alguma maneira é mais espírito que corpo, um corpo semi-descorporificado. Mas nós não falamos disso. Falamos de um corpo que é plenamente vivo enquanto corpo, presente, sólido, fértil, cheio da unção divina, e que de Deus pode receber e acolher a graça para realizar livremente os Seus mandamentos, que mantêm e sustentam, no interior do corpo e da alma, a vida plena. Se queremos um corpo espiritualizado, queremos na mesma medida um espírito corporificado. Tal é a unidade vital gradualmente acessível ao cristão católico conforme os avanços de sua busca pela santidade.
As quedas, os desvios, os pecados, necessariamente rompem tal unidade, e nos deixam sentir novamente o gosto amargo da miserável separação entre o homem e seu Criador. Deus permite tais quedas, não poucas vezes, para que voltemos com maior sede à nossa busca pela Comunhão, e também para que percebamos que a santificação somente é possível pela graça do Espírito, como dom Divino, de modo algum resultado exclusivo de nossos próprios esforços. Em nossos esforços próprios, infelizmente, estamos mais acostumados e inclinados ao egoísmo e ao pecado como regra, que à firme perseverança no estado de graça. Neste último estado, quando o sustentamos, o frescor e a alegria da fé, pela nossa maior conformação ao Cristo, faz manifestar a vida vigorosamente dentro de nós, e ao nosso imediato redor. Então, como é grande o desejo de sustentar tal estado! Pois, pelo pecado, tornamo-nos fracos, quando não obstinadamente egoístas, incapazes do amor-caridade, da entrega e do sacrifício pelo próximo, pela vida e por Cristo. Deus, em seu plano salvífico, quer nos restabelecer tal capacidade. Reconhecendo-nos pecadores, tornamo-nos sedentos pela Vida que é dom de Deus, queremos-na de novo em nossos corpos – sim – mas não conforme à carne: conforme o Espírito, unção vital e “alegria dos anjos”, provinda de Deus Criador.
A fé solicita uma entrega a Deus que é tão espiritual quanto corpórea, em igual intensidade: a necessidade de vincular profundamente a fé com as obras (Tg 2,17). A isto veremos em detalhes nos próximos artigos. Aqui, basta dizer, ecoando a Teologia do Corpo, que a realização vocacional do ser humano, conforme pensada por Deus desde o princípio para todos e cada um de nós, concretiza-se somente com uma doação integral de si que abrange os dois aspectos do ser indissociavelmente, a alma e o corpo, tanto na reciprocidade conjugal do matrimônio, na complementaridade sexual, ser-para o marido ou a esposa, quanto no celibato voluntário “por amor ao Reino dos Céus”, ser-para Cristo, em serviço à comunidade como membro da Igreja, Sua Esposa.
Jesus Cristo: transcendente e imanente.
O cristianismo autêntico não apenas não nega o corpo, a sexualidade e a dimensão sensível da existência, como também se situa radicalmente fora do dualismo platônico. Este coloca a verdade transcendente como radicalmente separada da dimensão corpórea ou sensível, imanente, e, mais do que isso, como estando estas duas dimensões em um conflito intransponível. A verdade, transcendente, seria passível de ser intuída e tocada somente por nossas almas, alcançada apenas na proporção em que se conseguisse, o máximo possível, desvencilhar-se do corpo e da dimensão sensível, fontes de engano. Tal incorreção filosófica – contida também no gnosticismo – aparece e reaparece em diversas heresias, sob diversos nomes, ao longo da história da Igreja.
É quase uma unanimidade entre as heresias, por mais distintas que pareçam, uma dificuldade em aceitar uma realidade básica e essencial do cristianismo autêntico: o fato de que Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro Homem. Cristo é Homem sem deixar de ser Deus, e é Deus sem deixar de ser Homem. Nós, de fé católica, adoramos a Humanidade de Cristo, não apenas a sua Divindade, pois adoramos o Cristo inteiro. Tal perfeita Humanidade, que em tudo foi igual à nossa com a exceção do pecado, foi o instrumento de Deus para a nossa salvação. A dificuldade em aceitar esta verdade fundamental da fé cristã aparece, inclusive, na base de todo o protestantismo. O problema é que tal verdade é exatamente aquela através da qual se dá a nossa Salvação: a ponte criada entre a transcendência e a imanência, entre o divino e o humano, ponte que segue, construída e aberta, dentro de toda grande basílica, e de toda pequena paróquia, concretamente presente dentro de todo sacrário; a gloriosa Comunhão do divino com o humano, à qual somos convidados por Cristo. E essa ponte já era mantida desde muito antes da construção do primeiro templo católico, é claro, quando os apóstolos, com a comunidade cristã primitiva, celebravam a Eucaristia após a ascensão de Cristo, ainda que isso fosse feito numa pequena casa, escondida da perseguição dos judeus e dos romanos.
“Se os homens conhecessem o valor da Santa Missa, a polícia teria que estar sempre às portas das igrejas para manter a ordem por causa da grande quantidade de pessoas que a assistiriam”. Qual a razão de tal frase, do nosso amado São Pio de Pietrelcina? Basta imaginar como seria a frequência nas igrejas, diariamente, se toda a humanidade subitamente soubesse, reconhecesse, se desse conta de que na Eucaristia nós recebemos o Corpo e o Sangue de Deus literalmente, em nossas almas, para nelas operar Suas graças…
Deus tem um Nome e é o Senhor da História.
Também é digno de nota, aqui, o fato de que em outras tradições religiosas e místicas, costuma-se buscar, através de um esforço do ser humano para desligar-se das “distrações” sensíveis – isto é, tudo o que é sensível sendo visto como obstáculo -, uma unidade puramente espiritual com a divindade (anônima) que descansaria dentro de cada um, em que o homem poderia dizer à divindade, “eu = tu”. Na tradição judaico-cristã, por sua vez, é o próprio Deus que procura o homem, lá onde ele está, e faz sua Aliança com ele, revelando seu Santo Nome ao ser humano, a começar pelas revelações veterotestamentárias: “Moisés disse a Deus: ‘Quando eu for para junto dos israelitas e lhes disser que o Deus de seus pais me enviou a eles, que lhes responderei se me perguntarem qual é o seu nome?’ Deus respondeu a Moisés: ‘EU SOU AQUELE QUE SOU’. E ajuntou: ‘Eis como responderás aos israelitas: (Aquele que se chama) EU SOU envia-me junto de vós.’ (Ex 3,13-14).
Deus nos criou, temos o Seu Espírito em nós, mas Deus é também o totalmente Outro por excelência, é o Todo-Poderoso, Inefável, Criador do céu e da terra. Revela-Se na imanência e na História, mas permanece transcendente e Eterno. Diz o salmista: “O Senhor, do alto do céu, observa os filhos dos homens, para ver se, acaso, existe alguém sensato que busque a Deus.” (Sl 13,2). O Criador nos busca e entra em relação conosco, pede que percebamos Seus sinais, que atendamos aos Seus chamados, faz-Se encontrar por nós, quer que entremos em relação com Ele, pela oração, e que O acolhamos em nossos corações; Tu + eu; Tu + cada um de nós.
Deus apresenta-Se ao homem numa relação face a face, digamos, corpo a corpo. Quando isso acontece, Ele não apaga a subjetividade do homem, mas, pelo contrário, concretiza-a, revela-a, dá ao homem seu verdadeiro nome; e a Seu Nome, que é Santo, revela-O, mas ao mesmo tempo guarda-O na eternidade do seu mistério. Assim é Deus: revela-Se a nós, mas permanece sendo o Inefável, o Inexprimível. Inesquecível a passagem do Livro do Gênesis em que Jacó, no deserto, luta com um homem que em seguida revela-Se como sendo o próprio Deus, que ganha corporeidade e toca em Jacó. “‘Teu nome não será mais Jacó, retomou ele, mas Israel, porque lutaste com Deus e com os homens, e venceste.’ Jacó perguntou-lhe: ‘Peço-te que me digas qual é o teu nome.’ ‘Por que me perguntas o meu nome?’, respondeu ele. E abençoou-o no mesmo lugar. Jacó chamou àquele lugar Fanuel: ‘porque, disse ele, eu vi a Deus face a face, e conservei a vida’.” (Gn 32, 28-30).
Com isso, podemos compreender o caráter não-espiritualista da fé no Deus que se revela nas Sagradas Escrituras. A esse respeito, diz o Cardeal Ratzinger: “Na mística, vale o primado da interioridade, absolutizando-se, assim, a experiência espiritual. Isso implica que Deus seja totalmente passivo em relação aos homens e que o conteúdo da religião só pode ser a submersão do homem em Deus. Não há nenhum ato de Deus, mas somente a ‘mística’ do homem, o caminho gradativo para a união. O caminho monoteísta parte de uma consideração oposta: aqui, o homem é passivo, o que atua nele é Deus; aqui, o homem nada pode por si mesmo, mas, em contrapartida, há uma ação de Deus, um chamado de Deus, a salvação abrindo-se para o homem na obediência a esse chamado”. Estamos falando de um Deus em ação, que nos procura. “Deus procura o homem no meio do mundo e das atividades mundanas e terrenas, vai atrás do homem, entra em relação com ele. Poder-se-ia dizer: a ‘mística’ da Bíblia não é uma mística pictórica, mas verbal, sua revelação não é exibição do homem, mas palavra e ação de Deus. Não é primariamente a descoberta de uma verdade, mas ato do próprio Deus que age na história. O seu sentido não é que a realidade divina se torna visível, mas fazer o receptor da revelação portador da mensagem divina. Pois aqui, em contraposição à mística, Deus é o que atua, e é Ele quem cria a salvação para o homem”.
Todo o espírito heroico dos Santos, todo o seu poder espiritual – como o de Maria, a Torre de Marfim, Senhora do Universo e de toda a Criação, que esmaga as heresias e o demônio – advém de uma total e irrestrita obediência a Deus e Suas ações. “Eis aqui a serva do Senhor”… Deus faz maravilhas em quem o serve; em quem mostra a Ele, com docilidade, sua pequenez.
Deus, que havia revelado o Seu Nome, EU SOU, e inspirado os patriarcas e os profetas, encarnou-Se como Jesus Cristo, a Palavra, o Logos de Deus. “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era Deus” (Jo 1,1). “E o Verbo se fez carne”… Deus ganhou um Rosto, um Corpo, revelou-Se como Verdade, deixando-nos conhecer Seu projeto salvífico para a humanidade. O que podemos fazer para sermos salvos é ajoelhar em humildade diante Dele, Revelado e Ressuscitado, e orarmos em súplica: Meu Senhor… Pois Jesus Cristo é, efetivamente, o Senhor do Céu e da Terra. Somos seus servos, e que alegria, que plenitude, encontramos em servi-Lo! “Ao simples ecoar / do vosso nome eterno, / joelhos vão dobrando / o céu, a terra, o inferno”.
Na oração, diante de Deus, de Cristo Ressuscitado, descobrimos a nós mesmos, alma e corpo. “Ninguém sabe o que é seu corpo até que tenha orado. É no exercício dessa grande função respiratória (Pneuma-Espírito), que é a oração, que nós tomamos consciência de nosso corpo, que o ‘enchemos’ verdadeiramente. A oração é mesmo a função última do corpo, sua função mais perfeita, sua grande função biológica, pois a rigor não existe vida (bios) a não ser pelo Verbo (Logos) e pelo Espírito. Além de todas as suas funções biológicas, no sentido mais comum, o corpo só se realiza na função orante, inaugurada no tempo e levada à perfeição no universo escatológico da ressurreição. A posição que nosso corpo assume na oração, ‘esquema’ tão importante na iconografia cristã primitiva, antecipa e prepara sua forma definitiva de ressuscitado” (François Cassingena-Trevedy).
“Quem diz que o Verbo de Deus não veio na carne é o Anticristo”.
Em homilia feita no dia 16/09/2016, o Papa Francisco falou a respeito da “lógica da fé Cristã” – a maneira fundamental de pensar que nasce do verdadeiro assentimento à verdade revelada – que ele descreve como sendo a “lógica do dia de depois de amanhã”, que olha para a ressurreição do corpo.
“É fácil para todos nós”, disse o Santo Padre, “entrar na lógica do passado, porque é concreta”, e é também “fácil entrar na lógica do aqui-e-agora, porque nós o vemos”. Quando, no entanto, olhamos para o futuro, então pensamos que “é melhor não pensar”, ou caímos na tentação de não pensar no futuro até o fim. “A lógica do dia depois de amanhã, esta é difícil. (…) A ressurreição: Cristo ressuscitou (…) e está claro que Ele não ressuscitou como um espírito. Na passagem em Lucas sobre a ressurreição: ‘Mas me toquem’. Um espírito não tem carne, não tem ossos. ‘Toquem-me, me deem de comer’. A lógica do dia depois de amanhã é a lógica na qual entramos na [ressurreição da] carne”.
“Nós traímos um certo gnosticismo, e pensamos que tudo será espiritual, porque temos medo da carne”. O Papa clama aos cristãos que digam “não” a uma piedade espiritualista, e entrem na lógica da carne de Cristo. Não esqueçam, diz ele, “que esta foi a primeira heresia” que o apóstolo João condena: “Quem diz que o Verbo de Deus não veio na carne é o Anticristo”.
“Nós temos medo de aceitar e sustentar as últimas consequências da carne de Cristo. Uma piedade espiritualista é mais fácil, um pietismo sutil; mas entrar na lógica da carne de Cristo, isso é difícil. E esta é a lógica do dia de depois de amanhã. Nós vamos ressuscitar como Cristo, com nossa carne”.
O Papa já havia clamado aos cristãos, em outra ocasião, que não apenas dessem esmolas aos pobres, aos miseráveis necessitados, jogando para eles algumas moedas rapidamente para livrar-se deles, mas que não tivessem medo de tocá-los. “Quantas vezes encontramos um pobre e, mesmo sendo generosos e sentindo compaixão, não o tocamos. Oferecemos uma moeda, mas evitamos tocar sua mão. Esquecemos que aquele é o corpo de Cristo! Jesus nos ensina a não ter medo de tocar o pobre e o excluído, porque Ele está neles. Tocar o pobre pode nos purificar da hipocrisia”.
A humanidade de Deus, em Cristo, revela-nos de uma vez por todas que “O corpo, de fato, e só ele, é capaz de tornar visível o que é invisível: o espiritual e o divino. Foi criado para transferir para a realidade visível do mundo o mistério oculto desde a eternidade em Deus, e assim ser sinal d’Ele” (Teologia do Corpo 19,4). Adoramos o Corpo de Cristo e o Seu Sagrado Coração, “tabernáculo do Altíssimo”. Adoramos a Cruz e as imagens de Cristo, pois são sinal do mistério da verdadeira encarnação de Deus. Veneramos as imagens da Virgem Maria e dos Santos, pois nos remetem aos protótipos, que, efetivamente, viveram e pisaram esta terra, e trouxeram (continuam trazendo) à nossa realidade material e sensível – após todo pecado, terra de exílio – a plenitude da Divindade. Quando se beija a mão de um padre, está-se prestando respeito à autoridade espiritual conferida por Cristo aos seus apóstolos, para ministrar o caminho da salvação na economia sacramental da Igreja.
São Pio de Pietrelcina, o mais extraordinário místico católico do século XX, teve os estigmas de Cristo em suas mãos, pés e na lateral do tórax por 50 anos. É assim a vida dos maiores místicos cristãos da nossa história: eles têm o seu coração transverberado, as feridas de Cristo revividas em seu próprio corpo, e a mais imensa capacidade de amar, face a face, corpo a corpo. “Agora eu me alegro nos sofrimentos por vós e completo em minha carne o que resta das aflições do Cristo em favor de seu corpo, que é a Igreja”, diz o inspirado Apóstolo Paulo (Cl 1, 24).
Ética e espiritualidade.
Uma outra ligação entre o corpo e o espírito na fé cristã, já presente em toda a tradição veterotestamentária, vem da total indissociabilidade da espiritualidade com a ética e a moral.
A sociedade contemporânea, amplamente mundana e antieclesial, está sendo “educada” para rejeitar a moral judaico-cristã, e a divulgar uma vaga “espiritualidade” dissociada de toda “religião”, a partir dos enganosos imperativos do poder global contemporâneo, que se serve também das ideologias revolucionárias-totalitárias de viés marxista, para impor globalmente uma mudança de consciência que favoreça a aceitação de suas pautas mais caras, como o controle populacional e, para isso, a legalização do aborto e da eutanásia, o “casamento” gay, a ideologia de gênero etc. – em suma, a descaracterização da família, do casamento e da sexualidade como instituições naturais. Sobre isso, no livro “Poder Global e Religião Universal”, Mons. Juan Claudio Sanahuja mostra como, hoje, quer-se estabelecer uma “religião” universal sem dogmas nem hierarquias, mais de acordo com o projeto de poder totalitário que está em curso, através de uma tentativa de neutralização e esvaziamento do conteúdo da Revelação Divina tal como anunciada e protegida pela Igreja há dois milênios. A tradição judaico-cristã, com sua defesa da dignidade irredutível de toda vida humana (da concepção até a morte), e de outros valores fundamentais para a salvaguarda da mesma em sua realização plena, é (e permanecerá sendo) obstáculo para a revolução antinatural do mundo.
No ambiente secular, em que se dissemina a desinformação e a confusão – além da obstinação ideológica – muitos passam a rejeitar a Igreja como sendo uma instituição “antiquada”, e a apostar em práticas “espirituais” inteiramente dissociadas de qualquer código ético e moral claro. Quer-se religiões, seitas ou práticas em cujas atividades a pessoa possa ter algum “bem-estar”, sentir-se “espiritualizada”, ou então obter realizações pessoais (em geral, de cunho material), mas que possa seguir vivendo como “quiser”, determinando suas próprias regras de ação e relação, sem ser “importunada” por uma moral fundamental e imutável, que fosse compartilhada e sustentada pela comunidade. Vive-se uma “espiritualidade” difusa, que não transforma toda a conduta do ser humano, mas, pelo contrário: que sustenta o relativismo moral dos dias atuais. Pode-se pecar à vontade – “nada é pecado”, isso seria questão de pontos de vista, sempre relativos – mas depois tem-se uma sessão de alguma coisa, seja lá o que for, para sentir-se bem, e obter “bons fluidos”.
Na espiritualidade cristã, conhecemos que, para estarmos próximos de Deus e protegidos contra os ataques do diabo e de seus demônios, é necessário que obedeçamos aos mandamentos divinos. Aquele que obedece aos mandamentos divinos mas não é nenhum místico, não faz experiências sublimes de meditação, ainda assim está salvo, mantém-se em território espiritual protegido. Não poderíamos dizer o mesmo do contrário. De nada adianta uma mística desobediente. (Daí, também, o engano das práticas “espirituais” que recorrem à magia, adivinhação, comunicação com espíritos, e ofendem o coração de Deus, ignorando Seus mandamentos). A obediência aos mandamentos nos mantêm em Deus, no seu jardim, e assim somos inspirados por Ele. Recorrendo novamente ao Cardeal Ratzinger, sabemos que “para os diversos caminhos religiosos fora da revolução iniciada pelos profetas, salvas são as almas interiores, seja qual for a religião a que pertençam. Para o cristianismo, são os crentes, qualquer que seja o grau de interioridade que eles alcançaram. Uma criancinha, um trabalhador sobrecarregado de trabalho, quando creem, são maiores do que os grandes ascetas”. Existem grandes personalidades religiosas fora do cristianismo. “Mas isso não tem importância alguma; o que importa é a obediência à palavra de Cristo” (Jean Daniélou).
É pela obediência completa aos mandamentos de Deus que – mesmo antes da Ressurreição escatológica da Carne, que nos foi prometida por Cristo e que professamos em nosso Credo – obtemos, não apenas a salvação de nossas almas, mas também a redenção de nossos corpos mesmo nessa vida de exílio, pois, pela obediência a Deus, podemos recuperar a integração corpo-alma e a abertura ao Espírito Santo, “distribuidor dos dons celestes”, e viver conforme a Sua Vontade.
“Comerás livremente o fruto de qualquer espécie de árvore que está no jardim; contudo, não comerás da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque no dia em que dela comeres, com toda a certeza morrerás” (Gn 2, 16-17). A transgressão dos mandamentos divinos leva à morte: isto é, à ruptura entre o corpo e a alma.
“Lâmpada para os meus pés é a tua palavra, e luz para o meu caminho” (Sl 119,105). Deus nos revelou Suas Leis, porque nos ama imensamente, e quer que saibamos o que fazer para recuperarmos a vida que perdemos com o pecado, quer que recuperemos a nossa própria realidade. Fomos desorientados pelo Pecado; este nos cega para a visão do Criador, e então, desobedientes, nos frustramos em todas as tentativas de encontrarmos a nós mesmos. Deus, nosso Pastor, quer nos reorientar, quer nos reconduzir ao Seu rebanho, quer nos devolver o acesso à Árvore da Vida, que perdemos no pecado. Trata-se, desde a Criação, e desde a Redenção, de uma constante escolha entre comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, proibida a toda criatura, ou comer da Árvore da Vida, entregando a Deus o que é de Deus, isto é – tudo, e nós mesmos. Em espírito, e em corpo.
“Eu vim para que as ovelhas tenham vida e para que a tenham em abundância.” (Jo 10,10).
Quando pecamos, a vida escapa de nós, sentimos nossos corpos e almas esvaziarem-se de consistência e de sentido. Na comunhão bem feita com Deus, consistência e sentido são a própria matéria inseparável da vida, e quando sentimos isso, a ação de Deus, o Inefável, torna-se verdadeiramente palpável… Palpável na paz profunda e eterna, que suspende o tempo, que recai sobre o espírito e irriga o corpo na Eucaristia. Na atmosfera sobrenatural e milagrosa da adoração ao Santíssimo Sacramento… Em que, no sagrado silêncio, todos os fiéis parecem dizer em uníssono: Deus, como sois Real! Como sois o Dono de toda a Realidade! Como a vida é irreal sem Vós! Não Vos pedimos nada além da Vossa Una e Trina Presença. Quando entrais num ambiente, ó Deus Todo-Poderoso, Pai, Filho, Espírito Santo, a tudo santificais e realizais… Na adoração ao Santíssimo, tudo o que é puro em nossos corações, tudo o que já foi purificado em nós pela conformação ao Cristo e à Virgem Maria, regozija interiormente, em paz e alegria; e tudo o que ainda não se santificou, mexe, incomoda, constrange-nos diante da Perfeição; toda inclinação para o pecado treme dentro de nós em santo temor. E como Jacó despertado do sono, depois de ter visto a escada para o céu, deitado sozinho ao ar livre com a cabeça sobre uma pedra, exclamamos: “Em verdade, o Senhor está neste lugar, e eu não o sabia!” (Gn 28,16).
“E, cheio de pavor, disse: ‘Quão terrível é este lugar! É nada menos que a casa de Deus; é aqui, a porta do céu.’ No dia seguinte, pela manhã, tomou Jacó a pedra sobre a qual repousara a cabeça e a erigiu em estela, derramando óleo sobre ela. Deu o nome de Betel [em hebraico, Casa de Deus] a este lugar, que antes se chamava Luza. Jacó fez então este voto: ‘Se Deus for comigo, se ele me guardar durante esta viagem que empreendi, e me der pão para comer e roupa para vestir, e me fizer voltar em paz para a casa paterna, então o Senhor será o meu Deus.’” (Gn 28,17-21).
Após encontrarmos com Deus corpo a corpo, após vermos tão de perto a escada para o céu como Jacó, não há como não querer retornar no dia seguinte mais dignos dessa visão, mais puros e conformados ao Cristo, para melhor subi-la. A Virgem Santíssima, que é a própria escada para subir ao céu, pois foi a escada que o céu usou para descer à terra, é nosso mais precioso auxílio, guarda-nos durante esta viagem, como Mãe da Igreja, para levar-nos à Comunhão com seu Filho Ressuscitado, que reina no topo e em todo lugar. A porta da Igreja é estreita – entra-se somente com a luta pela inteira conversão a Ele – mas do outro lado há pão para comer (Eucaristia), há roupa para vestir (a unção do Espírito Santo, o revestimento do “novo Homem”, isto é, de Cristo, o novo Adão). Há paz, plenitude de vida e verdade, no retorno à casa paterna. Há também uma boa Mãe.
“Quem crê em mim, como diz a Escritura: De seu seio jorrarão rios de água viva” (Jo 7,38).