E o que falta é bom senso quando toda conversa sobre o vestir-se feminino é automaticamente transformada em batalha ideológicaCerta vez, um policial de Toronto, no Canadá, fez a seguinte observação:
“As mulheres poderiam evitar ser estupradas se não andassem vestidas como se fossem prostitutas”.
O comentário suscitou veementes protestos por parte de um grupo de mulheres que, em reação, organizou um evento que elas próprias chamaram de “Slut Walks”. Esse evento foi reproduzido em dezenas de países com o nome traduzido para expressões locais: no Brasil, virou a “Marcha das Vadias”; em Portugal, a “Marcha das Galdérias”. Suas participantes se vestem de forma considerada “provocante”, conforme afirmam ser seu direito, e levantam faixas de repúdio a posturas e comentários como o daquele policial canadense: elas acusam esse tipo de visão de transferir para a vítima a responsabilidade pelo crime – no caso, o hediondo crime do estupro, que é injustificável em qualquer cenário que se possa imaginar.
Essa reivindicação feminina, portanto, é perfeitamente justa neste ponto de partida: o fato de uma mulher vestir roupas sensuais não autoriza homem algum a pressupor o “direito” de assediá-la ou, muito pior, de violentá-la. Aliás, o estuprador que joga a culpa do próprio crime na forma de vestir-se da mulher merece condenação dupla: pelo estupro e pela confissão de uma falta de autodomínio que não o qualifica sequer para o nível mais básico da convivência social.
No entanto, essa reivindicação que é justa no seu ponto de partida acaba descarrilando quando atropela todo e qualquer outro ponto de referência comportamental.
É absurdo, sim, transferir para a vítima a responsabilidade pelo crime do estuprador, mas esta premissa é deturpada quando se usa para justificar outra insensatez: a ideia de que as mulheres simplesmente não precisariam, em circunstância alguma, levar em consideração os efeitos que a sua maneira de vestir-se pode exercer sobre certa parcela dos homens – aquela parcela cujo caráter não foi formado de acordo com os princípios mais elementares da civilidade.
Esta é apenas a constatação de uma realidade – lamentável e que deve ser mudada, mas, por enquanto, ainda uma realidade. Enxergá-la é questão de bom senso e levá-la em conta é questão de prudência, da mesma prudência que manda evitar ostentação de riqueza em becos duvidosos. Por mais que todo o mundo possa (e deva) brandir o seu direito à segurança, à liberdade e à integridade física e proclamar que ninguém está autorizado a lhe arrancar nenhum bem material e menos ainda a lhe infligir violência, o fato é que os criminosos não se regem por esses conceitos. A constatação de que a realidade é do jeito que é não equivale a resignar-se a ela. Enquanto os níveis de educação no mundo continuarem rudimentares, precisaremos preservar, juntamente com os investimentos em educação, também o realismo da prudência básica – e isto, que serve ao nosso próprio bem, exige certas renúncias ocasionais, inclusive no modo de vestir-nos.
É basicamente por isso que os pais e mães sensatos, assim como os cônjuges, filhos, irmãos e amigos sensatos, continuam tendo o dever moral de fazer uns aos outros alertas como estes: “Não é prudente sair com esse relógio no pulso. Não é prudente passar por aquela região da cidade à noite. Não é prudente mostrar esse tipo de bem material a essa pessoa nesse contexto. E… não é prudente sair por aí com essa roupa”. É irracional ignorar essas considerações realistas e bem intencionadas e tachá-las todas, sempre, automática e rasamente, de “puro machismo”.
Outro aspecto que costuma afetar grande parte das discussões de hoje em dia sobre o jeito de apresentar-se e comportar-se (de mulheres e de homens) é a arrogância.
Façamos uma comparação. Certos amantes da música alta costumam emitir estrondosos decibéis que partem do seu carro ou da sua casa e arremetem orelhas do próximo adentro sem qualquer consideração pelos direitos desse próximo. Esses apreciadores egocêntricos do barulho justificam o seu descaso pelos tímpanos alheios com a seguinte extrapolação argumentativa: “O carro é meu, a música é minha e eu boto a música no meu carro no volume que eu quero”.
Pois bem: esta mesma “valorização seletiva dos direitos” é compartilhada por quem afirma que “A roupa é minha e eu boto a minha roupa onde eu quero e quando eu quero”.
Sim, a roupa é sua, o carro é seu e a música é sua (se não foi pirateada, naturalmente), mas será que estas são as únicas considerações que precisam ser feitas na hora de usar esses recursos que lhe pertencem?
Quando se transforma o “direito de vestir-se livremente” (ou de ficar nu, ou de ouvir música) numa absolutização incontestável, o que se faz é colocar esse direito acima de quaisquer outras considerações; acima, inclusive, de posturas prioritárias como o respeito pelo outro. Com isto, joga-se no lixo a coerência das próprias reivindicações de respeito.
Todas as assim chamadas “regras de etiqueta” ou práticas de “boa educação” partem da premissa de que o outro merece ser respeitado. É por respeito ao outro que se ouve música em volumes que não agridam o direito alheio de não ser perturbado. É por respeito ao outro que se evitam atitudes incômodas à mesa, como comer de boca aberta, beber diretamente da jarra ou arrotar como se fosse um brinde à boa convivência. E é por respeito ao outro que se adotam em público certas regras implícitas de… vestuário. Será mesmo que precisaremos de leis que nos obriguem a isso ou nos proíbam daquilo para pensarmos nos outros e não apenas em nós? Não podemos ser maduros o suficiente para pensar nos outros por decisão própria?
Com um simples ato de honestidade intelectual e uma pequena dose de bom senso, é fácil enxergar que essas constatações não equivalem a defender o agressor jogando a culpa na roupa da vítima.
Também não é difícil admitir que, quando se colocam os próprios desejos e caprichos acima do respeito pelos outros, é hipócrita exigir que os outros pratiquem o respeito. Se os outros faltam ao respeito, a solução é que eles sejam ensinados a respeitar, e não que as pessoas desrespeitadas se juntem à falta generalizada de educação, passando a vestir-se, despir-se, falar ou fazer o que quiserem, do jeito que quiserem, independentemente de qualquer outra consideração pelos demais.
Sim, é exatamente isto: para que haja respeito entre as pessoas, as pessoas não podem fazer tudo o que lhes dá na telha.
Num mundo agudamente enfermo de egocentrismo, porém, esse tipo de constatação, que deveria ser óbvio, não parece fazer sentido. Aliás, nada que envolva “deveres” parece fazer sentido num mundo que tergiversou a tal ponto o conceito de “direitos” que a sua prática precisa negar os direitos do próximo.
É verdade que há muitos casos em que a discussão sobre o jeito de vestir-se, em especial das mulheres, revela atitudes e pensamentos sexistas que precisam ser superados. Mas também há casos, e não são poucos, em que toda essa discussão é pura falta de bom senso e sobra de arrogância por parte de quase todos.
Vistamo-nos com bom senso. Vistamos o bom senso. E sejamos livres.