A quem fala que segue “somente a Bíblia”, pergunte-lhe quantos livros ela contém, e em seguida faça-lhe outra perguntaA Bíblia Católica tem 73 livros e a protestante 66. Daí, alguns irmãos separados acusarem os católicos de termos acrescentado livros à Bíblia, no Concílio de Trento (1545-1563), quando, na verdade, foi o protestantismo quem os retirou da Sagrada Escritura, conforme ficará comprovado neste artigo.
A Bíblia, como é sabido, não foi escrita de uma vez, mas aos poucos e em meio a dificuldades, dado ser a arte da grafia algo raro e caro na Antiguidade. Moisés foi, no século XIII a.C., quem começou a reunir e organizar as tradições orais e escritas do povo de Israel. A essas composições foram se juntando outras sem que houvesse da parte dos judeus uma preocupação de elaborar para elas um cânon ou catálogo.
Eis, no entanto, que, no século I da era cristã, começaram a aparecer as Cartas de São Paulo e os Evangelhos tidos pelos cristãos como continuadores (ou até mesmo complementadores) dos livros sagrados judaicos. Ora, isso muito desgostou o povo de Israel que tratou de impedir tal fusão. Como fizeram isso?
Reuniram-se, por volta do ano 100 d.C., em Jamnia (ou Jabnes), ao sul da Palestina, a fim de estabelecerem critérios seguros que deveriam caracterizar os livros inspirados por Deus ao povo judeu. Estabeleceu-se, então, que para ser considerado um escrito sagrado, ele: 1) não poderia ter sido elaborado fora das terras de Israel; 2) teria de vir em hebraico (nunca em aramaico ou grego); 3) a data tinha de ser antes de Esdras (458-428 a.C.) e 4) estar em concordância com a Lei de Moisés (a Torá).
Ora, acontece, no entanto, que, em Alexandria (Egito), existia grande grupo de judeus que falavam grego e chegaram a traduzir para aquele idioma os livros sagrados do povo de Israel, entre os anos 250 e 100 a.C., na chamada versão dos Setenta ou da Septuaginta. Aí, eles aceitavam livros que a reunião de Jamnia havia proibido. A saber: Tobias, Judite, Sabedoria, Baruque, Eclesiástico, 1º e 2º Macabeus, além de textos como Est 10,4-16.24; Dn 3,24-90 e Dn 13-14 (na Vulgata).
Pois bem, entre o catálogo restrito da Palestina e o amplo de Alexandria, os fiéis cristãos escolheram o segundo. Daí, os Padres (= Pais) da Igreja, nos primeiros tempos do Cristianismo, usarem – à exceção de São Jerônimo, falecido em 420 – o cânon de Alexandria: Clemente Romano, cerca de 95, na Carta aos Coríntios recorreu a Jd, Sb, fragmentos de Dn, Tb e Eclo. Já, em 140, o Pastor de Hermas usou, amplamente, Eclo e 2Mac, Hipólito de Roma, em 235, comentou Daniel com os fragmentos rejeitados por Jamnia além de Sb, Br, bem como se valeu de Tb e 1º e 2º Mc.
Prevaleceu, portanto, após alguns debates, o cânon amplo entre os cristãos. Tal catálogo foi confirmado pelos Concílios regionais de Hipona (393), Cartago III (397), Cartago IV (419), Trulos (692). Essas definições se repetiram nos Concílios Ecumênicos (universais) de Florença (1442), Trento (1546) e Vaticano I (1870). No século XVI, na Reforma Protestante, Lutero, a fim de contestar a Igreja Católica, adotou o catálogo de Janmia, que é restrito, excluindo, portanto, Tobias, Judite, Sabedoria, Baruque, Eclesiástico, 1º e 2º Macabeus, além de textos como Est 10,4-16.24; Dn 3,24-90 e Dn 13-14. Daí, a Bíblia reformada ter sete livros a menos que a católica.
A título de complementação, notemos um importante detalhe: Ninguém segue só a Bíblia: o católico a tem a partir do cânon amplo de Alexandria, confirmado pelos Concílios da Igreja, e os protestantes a utilizam à luz do catálogo restrito de Janmia, adotado por Lutero e seus seguidores a partir do século XVI.
A quem fala que segue “somente a Bíblia”, pergunte-lhe, educadamente, quantos livros ela contém. Ao lhe dizer que são 66, peça que a pessoa mostre em que livro, capítulo e versículo está esse dado numérico. Não encontrando (e não encontrará), faça-a ver que ela não segue só a Bíblia. Está ludibriada ou, então, agindo de má-fé.
Para aprofundamento, indicamos a obra O Cânon Bíblico, de Alessandro Lima.
Vanderlei de Lima é eremita na Diocese de Amparo.