Relendo o texto de Bento XVI, me dei conta de que ele faz uma correlação mais sutil do que a imaginada pelos que o criticaramContrapor Bento XVI e Francisco parece ter se tornado o exercício preferido de alguns setores da Igreja e da mídia. Na verdade, trata-se de instrumentalizar declarações de um ou de outro para defender e justificar posições particulares de gente descontente com o presente ou com o passado. O recente texto do papa emérito sobre a pedofilia na Igreja é um exemplo desse problema [1].
Uma das diferenças mais notáveis entre os dois papas é que Francisco parece saber sempre falar aquilo que o interlocutor gostaria de ouvir, enquanto Bento XVI sempre toca naquele ponto incomodo que causa desconforto para muitos interlocutores. Em boa parte, isso acontece porque se recorta – nos pronunciamentos de um e de outro – aquilo que confirma os estereótipos que carregam. Não se trata de uma demonização dos meios de comunicação. Jornalistas noticiam aquilo que especialistas lhes indicam como importante. Quando esses estudiosos têm uma visão polarizada e distorcida da realidade eclesial, difundem essa imagem para a sociedade como um todo.
Mas voltemos ao artigo do papa emérito sobre a pedofilia. A maior crítica ao texto tem vindo do fato de começar a discutir o problema da pedofilia na Igreja na perspectiva da liberação sexual da década de 1960. Confesso que, por conta disso, também tive uma impressão ruim ao ler o artigo pela primeira vez. Afinal, todos sabemos que casos de escândalos sexuais, desrespeito aos votos de castidade e ao celibato acontecem na Igreja há muito tempo. Contudo, amigos me enviaram um estudo sobre os casos de pedofilia nos Estados Unidos que me obrigou a reler o texto de Bento XVI, numa outra ótica.
Resumindo os dados desse estudo, no que nos interessa aqui, ele mostra que existe um aumento de atos de pedofilia cometidos por padres nos Estados Unidos entre 1960 e 1980, com uma redução gradativa no período subsequente. Note-se que o ano da denúncia não é o mesmo do crime, pois muitos casos foram revelados posteriormente. Essa curva poderia ser consequência do encorajamento às denúncias num período recente, mais do que um aumento efetivo de casos. Acontece que o número de atos contra meninas e contra crianças menores de 11 anos não mostra o mesmo comportamento, mantendo-se aparentemente constante por todo o período. Ou seja, parece que houve realmente um aumento de casos envolvendo adolescentes e jovens a partir da revolução sexual (anos 1960 e posteriores).
Relendo o texto de Bento XVI, me dei conta de que ele faz uma correlação mais sutil do que a imaginada pelos que o criticaram. Ele não diz que a liberação sexual levou à pedofilia diretamente. Diz que a revolução dos costumes levou a uma desorientação em relação aos conceitos de certo e de errado, que dificultou um processo educativo e um discernimento adequado diante dessa situação. Os responsáveis pela formação dos sacerdotes não sabiam bem o que fazer para garantir uma afetividade adequada num contexto de liberação sexual. O problema não era só deles, nem foi só dessa época. Também entre os pais, ainda hoje, é frequente a dificuldade em orientar bem os filhos, de modo que possam usufruir daquilo que existe de positivo na maior liberdade que gozam na atualidade, vivendo uma afetividade sadia e responsável. Os jovens de nossos dias são mais liberados sexualmente do que os do passado, mas nem por isso parecem estar mais realizados afetiva e humanamente.
A superação desses problemas, na perspectiva de Bento XVI, passa pela recuperação de uma perspectiva mística que reconhece a ação de Deus na natureza humana e na história, permitindo um justo discernimento. Importante ressaltar que o papa emérito não propõe uma solução fundamentalista, baseada na pura interpretação bíblica; nem prega a volta à disciplina do passado. Defende um discernimento onde fé e razão, exegese bíblica e reconhecimento da condição humana, dialogam iluminadas por uma perspectiva de reconhecimento do amor de Deus. Os fatores estão elencados nos termos do pensamento de Ratzinger, mas não se contrapõem ao modo de ser Igreja de Francisco.
Continuando, Bento XVI faz uma discussão de Direito Canônico, bastante específica. Aqui, temos de considerar que ele não está falando em teoria, trata-se de um relato dos debates que ele presenciou, já como Prefeito para a Congregação da Doutrina da Fé, no pontificado de São João Paulo II. Sem usar esses termos, procura responder à pergunta: por que uma política de “tolerância zero” contra a pedofilia, aos moldes daquela que está sendo definida agora, não foi implementada naquele período? Basicamente, ele argumenta, porque a ideia era que se deveria garantir ao máximo o direito de defesa dos acusados, o que teria levado a uma situação em que as condenações se tornavam quase impossíveis. Bento XVI defende que, para preservar a fé e evitar escândalos desnecessários entre a comunidade dos fiéis, medidas cabíveis devem ser tomadas o quanto antes, sem se protelar as decisões. Trata-se, nesse caso, de uma ratificação da política em relação à pedofilia proposta por Francisco.
O texto de Bento XVI não representa um confronto com seu sucessor. O confronto é criado pelos leitores. Cada papa tem seu estilo e suas ideias. São pessoas de pensamento forte e grande convicção. Ninguém deve esperar que um pense como o outro. Mas as objeções desenhadas entre o pensamento de cada um deles são geralmente falsas, fruto de leituras capciosas mais do que problemas objetivos.
A Igreja se fortalece na unidade, com uma doutrina que vem sendo elaborada ao longo da história, cada nova ideia se apoiando nas reflexões anteriores (o que chamamos de Tradição). Querer defender Francisco criando uma divisão entre ele e seus antecessores só irá dificultar a renovação que ele procura fazer na Igreja. Na prática, quanto mais sólida for a base herdada dos papas anteriores, mais seguro e extenso poderá ser o salto dado por Francisco.
Quando nos reportamos aos ensinamentos da Igreja e encontramos algo que nos desagrada ou, pelo menos, nos causa estranheza, podemos ter duas atitudes. Uma é procurarmos argumentos para nos autoconvencer que estamos certos, geralmente atacando a pessoa ou o contexto do qual o ensinamento foi emanado. A outra é nos perguntarmos o que Deus queria nos mostrar com aquela passagem em particular, em que aquela estranheza ou desconforto pode contribuir para a nossa conversão. A primeira atitude gera divisão, a segunda, santificação. Uma leva ao cisma, outra ajuda à melhor compreensão dos ensinamentos de Cristo (que sempre precisarão de explicitações e aplicações conjunturais para serem plenamente vividos).
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[1] Uma tradução do texto em português pode ser lida em https://www.acidigital.com/noticias/o-diagnostico-de-bento-xvi-sobre-a-crise-da-igreja-e-dos-abusos-sexuais-do-clero-28270.