Não se vê porque inventar, falsamente, ter sido o Concílio de Trento que instituiu o celibato sacerdotalNo Fórum dos Leitores d’O Estado de São Paulo, de 14/02 último, online, um leitor lamenta que o Papa Francisco não tenha – como, aliás, alguns esperavam afoitos – tocado no celibato sacerdotal. Vale a pena refletir sobre o tema.
Diz o autor da carta: “É uma pena que o papa Francisco tenha recuado da proposta de que, em casos específicos e de acordo com a necessidade, homens casados fossem ordenados padres em comunidades afastadas da região amazônica, cedendo à pressão de bispos conservadores”.
Realmente, há um debate sobre a ordenação de homens casados experientes (os viri probati, em latim) a fim de exercerem o ministério sacerdotal em regiões nas quais há grande falta de sacerdotes. Isso apareceu no Instrumentum Laboris (Instrumento de Trabalho) do Sínodo sobre a Amazônia, n. 129, e foi criticado não apenas por “bispos conservares”, mas também por padres, religiosos e leigos. Todos víamos nisso muito mais certa pressão revolucionária contra o celibato do que uma medida eficaz para a falta de padres. Contudo, para o Papa a abolição do celibato está fora de discussão.
Sim, no voo de regresso do Panamá a Roma, em 29/01/2019, ao ser indagado sobre o tema, Francisco afirmou: “Não concordo em permitir o celibato opcional. No rito latino, uma frase de São Paulo VI vem à minha mente: ‘Prefiro dar a vida antes de mudar a lei do celibato’. Neste momento, isso me veio em mente e quero afirmá-lo porque é uma frase corajosa. Ele disse isso em 1968-1970, num momento mais difícil do que o atual. Não ao celibato opcional antes do diaconato. É uma coisa minha, pessoal. Eu não o farei, isso é claro. Sou fechado? Talvez, mas não me sinto de colocar-me diante de Deus com esta decisão” (cf. Paulo VI. Sacerdotalis caelibatus, 24/06/67).
Continua a carta do Estadão: “Se a proposta fosse realmente implantada, seria uma oportunidade de a Igreja rever a longo prazo o celibato clerical obrigatório, em vigência desde o Concílio de Trento (1545-1563). O obscurantismo conservador continua impedindo a discussão franca e aberta de certas questões fortemente atadas a um mundo longínquo que não existe mais. Não é por acaso que a Igreja Católica continua perdendo seguidores”.
Vê-se que o autor da carta, no desejo de atacar, acaba falando sem bem saber o que diz. Com efeito, frente ao grande número de pessoas que, livremente, foram abraçando o celibato desde as origens do Cristianismo, a Igreja houve por bem dar normas disciplinares – portanto, não dogmáticas – a respeito da vida celibatária. Assim, o Concílio regional de Elvira, por volta do ano 300; o de Roma, em 386; os de Cartago, em 390 e 401; o de Toledo, em 400; o de Turim, em 401 (ou 417, a data é incerta); o de Latrão, em 1139, e o do Vaticano II (1962-1965). Não se vê porque inventar, falsamente, ter sido o Concílio de Trento que instituiu o celibato sacerdotal.
Embora seja, como dito, uma norma disciplinar de direito eclesiástico – não divino, portanto –, e possa um dia ser alterada sem retocar a essência da fé e da moral católica, é uma prática cristalizada e cuja base bíblica está em duas principais passagens que devem ser lidas com vagar: 1Cor 7,25-35: há aí o louvor à vida una e indivisa por amor a Deus. Quem O descobre fica ciente de que a figura deste mundo passa, por isso tudo o que aqui for feito, deve ser realizado para o Senhor ou em vista do Eterno e Mt 19,12: trata do eunuco por livre opção ante aqueles que eram eunucos por natureza e por essa condição menosprezados pela Antiga Lei (cf. Lv 21,1-20; Dt 23,2). Certo é que o Senhor Jesus não desvaloriza, de modo algum, o Matrimônio por Ele mesmo elogiado (cf. Mt 19,4-5 ligado a Gn 1,27; 2,24), mas, sim, ensina que o amor exclusivo a Deus, e por Ele ao próximo, deve ser vivido na entrega total ao Reino.
Por ora, agradeçamos a Deus por ter o Santo Padre, o Papa Francisco, na Exortação apostólica Querida Amazônia, sanado confusões que o tendencioso Instrumentum Laboris causou em não poucos fiéis.