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Pior ano de todos os tempos? 2020 está longe desse “troféu”

pior ano de todos os tempos
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Francisco Vêneto - publicado em 05/10/20
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Conheça o ano de 536, apontado como “o início do período histórico mais difícil de se viver”Pior ano de todos os tempos? Essa parece fácil e muita gente nem hesitaria em responder na lata! Aliás, caro leitor, é possível que você mesmo já esteja com a resposta na ponta da língua… A lista de motivos, afinal, é bem convincente:

  • A pandemia de maior impacto, extensão e mortalidade dos últimos 100 anos no planeta.
  • Crise econômica generalizada e instabilidade política em dezenas de países e territórios.
  • Convulsões sociais e grandes manifestações pontuadas de violência e manipulação ideológica tanto em nações pobres quanto em países ricos.
  • Conflitos bélicos deflagrados na África, no Oriente Médio, na Ásia Central e até na Europa, com as crises do Cáucaso e da Bielorrússia.
  • Tensões militares e riscos de guerra da Venezuela às Coreias, passando pelo eterno barril de pólvora do Golfo Pérsico – e, agora, acrescentando os indícios de uma nova “Guerra Fria” entre os Estados Unidos e a China.
  • Drama das migrações forçadas sem solução à vista e com novas ondas de afluência não só no Mediterrâneo, mas também no Sudeste Asiático e, apesar da redução por causa do fechamento de fronteiras, ainda na Venezuela bolivariana.
  • Episódios críticos da desordem climática, emoldurados tanto por secas, incêndios e ondas inéditas de calor quanto por enchentes, tornados e tempestades históricas.

De fato, 2020 nem terminou e milhões de pessoas já o qualificam como o “pior ano de todos os tempos”.

Mas será que é mesmo?

Trágico século XX

Não é preciso voltar tanto assim no tempo para colocar essa afirmação em sérios questionamentos. Só no século XX, por exemplo, o nosso 2020 encontra rivais apavorantes que concorrem com brutalidade ao “troféu” de pior ano de todos os tempos.

Segunda Guerra Mundial

Entre 1939 e 1945, a mais devastadora de todas as guerras jamais travadas em toda a história da humanidade sepultava mais de 60 milhões de seres humanos.

Regimes comunistas

Regimes comunistas se consolidaram mundo afora ao longo do século XX. Eles começaram em 1917, na Rússia, e foram se espalhando pelo mundo desde bem antes da Segunda Guerra Mundial. No seu conjunto, exterminaram entre 90 e 100 milhões de pessoas, em particular nos territórios da falida União Soviética. Mas também na Coreia do Norte, no Sudeste Asiático, na África, no Leste Europeu, na América Latina e, principalmente, na China.

O Holodomor é um dos mais estridentes escândalos homicidas do regime comunista. Sem exagero algum, por sinal, esse extermínio sistemático e proposital de toda uma população é descrito como “o genocídio ucraniano”.

Em termos de “índice de horrores“, porém, o páreo é muito duro com a devastação provocada pela Revolução Comunista Chinesa e seus 65 milhões de mortos.

Dobradinha Primeira Guerra Mundial + Gripe Espanhola

De 1918 a 1920, praticamente sem pausa alguma após o horror da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a pandemia da Gripe Espanhola assassinava de modo espantoso até 100 milhões de pessoas pelo mundo.

Indefectível Peste Negra

Vamos dar agora um longo salto ao passado, viajando direto do século XX ao XIV. Mas não porque esse meio-tempo tenha sido pacífico: basta recordar, afinal, os horrores da Revolução Francesa e um sem-fim de guerras espalhadas entre Américas e Extremo Oriente, praticamente sem deixar nenhuma região do mundo isenta de conflitos. O salto é apenas por economia de espaço nesta matéria…

A peste bubônica do século XIV

Se o assunto é pandemia, não existe absolutamente nenhum termo de comparação entre qualquer outra e a quase mítica Peste Negra. Por volta de 1349, a peste bubônica estava eliminando de um terço à metade de toda a população da Europa. Além disso, atingia com intensidade também regiões da África e da Ásia.

Entre chagas e pústulas tão fétidas e repugnantes quanto intratáveis, aquela sentença de morte torturava e assassinava em tempo recorde milhões de pessoas sem chance de resistência.

O pior ano de todos os tempos

No entanto, em se tratando do “pior ano de todos os tempos”, há estudiosos da História que não apontam nenhum desses períodos como o mais trágico da trajetória da humanidade.

Um deles é o arqueólogo Michael McCormick, professor da Universidade de Harvard especializado em História Medieval. Ele sustenta que os piores meses já registrados em todos os tempos não foram os de 2020, nem os da Segunda Guerra Mundial, nem o biênio da gripe espanhola, nem os anos horrendos da Peste Negra.

O “pior ano de todos os tempos” foi também “o início de um dos piores períodos para se estar vivo”.

Para Michael McCormick, o “pior ano de todos os tempos” foi o obscuro e pouco mencionado 536 d.C.

Até o sol perdeu o brilho no “pior ano de todos os tempos”

O Império Romano já tinha ruído. O mundo ocidental, portanto, era uma caótica colcha de retalhos imersa em instabilidades de todo tipo.

Naquele ano bizarro, uma névoa misteriosa começou a cobrir e escurecer os céus. E não só na Europa, mas também no Oriente Médio e em vastas áreas da Ásia. A noite e o dia se confundiram durante nada menos que insuportáveis 18 meses.

O historiador Procópio de Cesareia, do Império Bizantino, foi testemunha ocular daquele ano e meio literalmente marcado pelas trevas:

“O sol emitia a sua luz sem brilho, como a lua durante todo o ano”.

E não era só o sol que parecia em eclipse constante. Além disso, o mesmo Procópio também registrou para a posteridade:

“Os homens não estavam livres da guerra, nem da peste, nem de qualquer outra coisa que levasse à morte”.

Das trevas à guerra

No “pior ano de todos os tempos”, de fato, as sangrentas Guerras Góticas terminaram de assolar a Itália já devastada pelo desabamento do Império. A guerra não poupou as grandes ilhas italianas da Sardenha e da Sicília. Também não escapou a região dos Bálcãs, com suas atuais Eslovênia, Croácia, Bósnia e Herzegovina, Sérvia, Montenegro, Kosovo, Albânia e Macedônia do Norte.

Tratou-se de um intenso conflito entre o Império Romano do Oriente e o recentemente instaurado Reino Ostrogótico. Essa guerra só foi terminar em 553. Em decorrência dela, ficou em frangalhos uma vasta região que, até então, estava entre as mais avançadas, civilizadas, povoadas e férteis do mundo. Para se ter uma ideia do estrago causado, aliás, basta dizer que Florença e Roma acabaram irreconhecíveis.

Da Pequena Era do Gelo à onda de fome

Procópio não foi o único a documentar a guerra e a névoa misteriosa que deixava o sol azulado e as pessoas em pânico. Também o político romano Flávio Magno Aurélio Cassiodoro escreveu:

“As estações do ano pararam de existir. Ficamos estupefatos, inclusive, porque não víamos sequer a sombra dos nossos próprios corpos ao meio-dia”.

E há mais testemunhos: o escritor bizantino Miguel, o Sírio, também registrou a misteriosa grande nuvem que escureceu a Terra por volta de 536.

O “pior ano de todos os tempos”, além do mais, viu a temperatura do planeta cair. E cair seriamente. O escurecimento dos céus deu início à década mais fria já documentada em milênios. Por causa dessa mudança brusca, os historiadores chegaram a batizar o período de nada menos que a “Pequena Era do Gelo”.

De fato, uma sequência de estudos realizados na década de 1990 com base nos anéis de árvores ultracentenárias comprovou que os verões daquela época foram extraordinariamente frios. E isso causou graves impactos no crescimento das plantas. Por conseguinte, a produção de alimentos sofreu um baque de proporções gigantes.

Com a perda generalizada das colheitas daquele ano, uma carestia sem precedentes matou milhões de pessoas de fome. Esse drama, aliás, também consta da literatura medieval: os Anais de Ulster, uma série de crônicas irlandesas, recordam “a falta de pão dos anos 536 a 539”.

Da onda de migrações a mais guerras e mais fome

E o “pior ano de todos os tempos” só piorava. A fome e os flagelos climáticos obrigaram povos inteiros a migrar. Acontece que o deslocamento monumental de todo um povo gera conflitos inevitáveis: afinal, já existem outros povos nos lugares para onde os migrantes se dirigem. Essa dinâmica de chegada de um povo e conflito com o outro, além disso, aumenta a onda de migrações, já que força os derrotados a também migrarem. Há, portanto, um efeito dominó que expande as instabilidades.

Temos o caso, por exemplo, dos ávaros. Eles fugiram da seca de 536 na Mongólia e chegaram ao Leste da Europa. Por lá, invadiram e conquistaram a Panônia, vasta região que abrange as atuais Hungria, Sérvia e Romênia.

Os habitantes locais, com isso, foram massacrados ou obrigados a fugir. Os derrotados de uma região, porém, frequentemente se tornam os invasores de outra. E, de fato, foi o que ocorreu com os longobardos. Forçados a escapar da Panônia invadida pelos ávaros, eles invadiram, por sua vez, a Itália. Assim, entraram em confronto com os bizantinos ali estabelecidos. E, já que os bizantinos estavam debilitados pela carestia e pelos seus efeitos, como a fome e a doença, não foi difícil derrotá-los. Desta forma, a onda de migrações e conflitos atingia cada vez mais povos e mais regiões. E a instabilidade, por conseguinte, se espalhava sistemicamente.

O pior ano de todos os tempos não coube em seus 12 meses

Diante de tal cenário, o historiador e arqueólogo David Keys desenvolveu uma tese ousada.

Para ele, afinal, os impactos do ano 536 nas frágeis sociedades do início da Idade Média europeia foram tão profundos e duradouros que, algumas décadas depois, vieram a facilitar em muito a expansão do islã. Por exemplo: as tribos turcas que originaram o Império Otomano só puderam expandir-se, de acordo com Keys, porque os povos invadidos estavam enfraquecidos pelos séculos de catástrofes acumuladas.

Não à toa, o título do livro em que ele expõe essa tese é justamente “Catastrophe: An Investigation Into the Origins of the Modern World“. A obra ainda não está disponível em português, mas o seu título, em livre tradução, quer dizer “Catástrofe: Uma Investigação sobre as Origens do Mundo Moderno“.

O “pior ano da história”, de fato, sofreu e gerou catástrofes tão intensas que os seus efeitos se prolongaram ao longo de séculos. Com isso, 536 d.C. acabou moldando a continuidade da história em praticamente todo o planeta.

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Com informações de Aventuras na História


peste negra
Leia também:
O retorno da Peste Negra: mais um fantasma para assombrar 2020?

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