São João Paulo II, em 2000, instituiu a Festa da Divina Misericórdia, a ser celebrada no primeiro domingo depois da Páscoa. Na época, alguns torceram o nariz, alegando que era uma devoção particular do Papa, pois a festa havia sido pedida por Santa Faustina Kowalska (1905-1938), de origem polonesa. Contudo, em 2015, o Papa Francisco anunciou o Jubileu Extraordinário da Misericórdia. Celebrar a misericórdia não é, portanto, uma devoção desse ou daquele papa, mas um chamado que a Igreja faz a todos, em nossos dias. Devo a um amigo, Marcelo Cypriano Motta, a percepção de que a misericórdia não podia ser celebrada apenas como devoção íntima, mas deveria ser uma cultura, uma mentalidade, com a qual os cristãos contemplam e se posicionam diante de toda a realidade.
Mas o que seria essa “cultura da misericórdia”? Não estaria errado dizer que é uma cultura onde as pessoas se dedicam às obras de misericórdia e se confiam à misericórdia de Deus. Mas, ela vai além disso. É um modo de conceber a si próprio e de julgar todos os eventos que acontecem no mundo. Essa mentalidade inspirada na misericórdia fica muito evidente quando observamos os gestos e declarações do Papa Francisco.
Francisco fez questão de contar um episódio que, sem dúvida, não pode ser considerado elogioso. Quando era bispo em Buenos Aires, nos funerais de um velho padre argentino, homem de grande piedade, com o qual muitos iam se confessar, aproveitou uma oportunidade e pegou a cruz do rosário que estava entre os dedos do defunto. O Papa conta que, naquele momento, pediu ao velho padre morto: “Concede-me metade da tua misericórdia”. E acrescenta “até hoje, aquela cruz está comigo, e quando me vem um pensamento mau contra uma pessoa qualquer, a minha mão vem sempre para o peito, sempre”.
Francisco, com certeza, conta essa história para mostrar a força do testemunho que um homem misericordioso dá aos demais. Mas, ao mesmo tempo, mostra que ele também é um pecador, um ser tão falível quanto todos os outros. Enquanto fazemos o possível para ocultar nossos erros, ele faz questão de revelar esse seu para todos. Não por masoquismo, mas porque deseja testemunhar a todos nós a importância da misericórdia para ele mesmo. E aí vamos para nosso próximo exemplo...
O padre jesuíta Antonio Spadaro começa sua entrevista a Francisco perguntando: quem é Jorge Mario Bergoglio? O Papa responde: “Não sei qual possa ser a definição mais correta… Eu sou um pecador. Esta é a melhor definição. E não é um modo de dizer, um gênero literário. Sou um pecador. Sim, posso talvez dizer que sou um pouco astuto, sei mover-me, mas é verdade que sou também um pouco ingênuo. Sim, mas a síntese melhor, aquela que me vem mais de dentro e que sinto mais verdadeira, é exatamente esta: ‘Sou um pecador para quem o Senhor olhou’. Sou alguém que é olhado pelo Senhor. A minha divisa, Miserando atque eligendo [do latim: Tendo misericórdia, o escolheu], senti-a sempre como muito verdadeira para mim”.
A consciência do próprio pecado investe toda a sua personalidade. Mas não gera, como as pessoas supõem em nosso mundo autocentrado, uma sensação ruim, não o deixa deprimido ou inferiorizado. Pelo contrário, fazem com que ele se descubra amado. Santo Agostinho não escreveu suas célebres “Confissões” motivado por algum complexo de culpa ou porque pretende expiar seus pecados desse modo. O santo e o Papa atual falam de seus pecados para cantar a beleza do amor de Deus. Quanto mais mergulham no próprio pecado, mais descobrem o quanto Deus os ama – e como o amor de Deus lhes permite ver tanto os dramas quanto as belezas do mundo com um outro olhar.
Francisco irá por essa visão de mundo em prática quando responde a uma pergunta, na entrevista do retorno de sua viagem ao Brasil, para a Jornada Mundial da Juventude, dizendo a famosa frase “Se uma pessoa é gay e procura o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para a julgar?”. Ele deixa claro, na resposta, que não concorda com qualquer lobby que eventualmente tentasse impor a ideologia de gênero. Mas, ao olhar a pessoa concreta, o primeiro passo, o gesto natural, é o de acolhida, um convite àquilo que existe de bom em todos, não uma condenação de coisas más. Na mesma resposta, ele dirá, um pouco antes: “Muitas vezes eu penso em São Pedro: fez um dos piores pecados, que é renegar a Cristo, e com este pecado Cristo o fez Papa”. Um olhar sincero para a bondade de Deus nos desarma e nos faz mais capazes de amar com ternura os nossos irmãos. E isso faz muita diferença, faz com que nos tornemos apoio a nossos irmãos, assim como eles são para nós. Sem a experiência da misericórdia, o juízo que condena se torna um obstáculo no caminho de cada um de nós rumo ao Pai, em vez de ser um instrumento de conversão.
Na Laudato si’ (LS 77), Francisco escreve: “Então cada criatura é objeto da ternura do Pai que lhe atribui um lugar no mundo. Até a vida efêmera do ser mais insignificante é objeto do seu amor e, naqueles poucos segundos de existência, Ele envolve-o com o seu carinho”. Quanto amor e quanta ternura! Mas, diante da vastidão do universo e da eternidade de Deus, não somos nós também seres efêmeros e insignificantes, envolvidos por seu carinho nessa centelha de tempo e espaço na qual transcorre nossa vida? O fascínio diante do amor de Deus se torna como a lente que desvenda o mistério do mundo e a beleza que se esconde em todos os seres e em todas as realidades.
“O que quiserdes que vos façam os homens, fazei-o também a eles, porque isto é a Lei e os Profetas (Mt 7, 12). Este apelo é universal, tende a abraçar a todos, apenas pela sua condição humana, porque o Altíssimo, o Pai do Céu, ‘faz com que o Sol se levante sobre os bons e os maus’ (Mt 5, 45). Em consequência, exige-se: Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso (Lc 6, 36)” (Fratelli tutti, FT 60). A recente encíclica social do Papa Francisco pode ser considerada, toda ela, uma explicitação de como esse olhar misericordioso gera novos comportamentos sociais e políticos, influenciando a vida moral, social e política de todos nós.
Mas talvez, nesse aspecto, o grande diferencial do homem movido pela misericórdia tenha sido explicitado por um líder político, Barack Obama: “Raro é o líder que nos faz querer ser pessoas melhores. Papa Francisco é um desses líderes. Sua Santidade nos motiva com a sua mensagem de inclusão, especialmente dos pobres, marginalizados e excluídos. Mas são seus feitos, sua postura, seus gestos simples e profundos ao mesmo tempo – abraçando o doente, acolhendo os sem-teto, lavando os pés dos jovens prisioneiros – que têm inspirado a todos nós”. Muitos podem nos falar de amor, justiça, bem comum, mas poucos nos convencerão de que esses ideais são possíveis com a mesma força daquele que testemunha a misericórdia de Deus.