O 15º Relatório sobre liberdade religiosa no mundo, da Ajuda à Igreja que Sofre (em inglês, Aid to the Church in Need, ACN), lançado mundialmente no último dia 20 de abril, mostra um cenário de conflitos envolvendo a religião, na América Latina e no Brasil, que passa quase desapercebido entre nós. Sofremos com a intolerância contra religiões de origem africana e minorias estigmatizadas, com os conflitos ideológicos que dividem os cristãos e com aquilo que o Papa Francisco chamou de “perseguição educada” e que alguns no Brasil chamam de cristofobia (erroneamente, pois essa perseguição educada não é aquela perseguição agressiva que ocorre no Oriente Médio, na China ou, em alguns momentos, até mesmo no México).
Como nos sentiríamos se soubéssemos que uma menina, indo para sua primeira comunhão de vestidinho branco, foi apedrejada por estar vestida para ir à missa? Pois uma situação semelhante aconteceu, aqui no Brasil, com uma menina que saia, com trajes típicos, de uma cerimônia de candomblé, em 2015. E se um grupo de traficantes entrasse nas igrejas de uma cidade e proibisse a realização de missas? Pois um grupo de traficantes, autointitulado “Bandidos de Cristo” fez isso em terreiros de umbanda e candomblé em 2019, na Baixada Fluminense. Em Manaus, a polícia não quis aceitar a queixa de um pai de santo que estava sendo ameaçado fisicamente por um vizinho, e em Brasília a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) entrou com uma denúncia de intolerância religiosa porque o governo destruiu um terreiro de candomblé sob a alegação de que se tratava de uma construção irregular, mas não fez nada em relação a todas as outras construções irregulares em volta. No auge das ações do Estado Islâmico, no Oriente Médio, uma senhora muçulmana foi socada, no Brasil, no meio da rua, simplesmente porque estava usando um véu no rosto. E um judeu foi espancado no interior de São Paulo, por jovens neonazistas, porque usava quipá,
As páginas sobre liberdade religiosa no Brasil, no Relatório mais recente da ACN e nos anteriores, trazem esses e outros exemplos de intolerância religiosa entre nós, mostrando que não somos um País onde os religiosos gozam, na prática, dos mesmos direitos. Todas as religiões, inclusive a maioria católica, sofre com alguns atos de intolerância e violência, mas um cálculo baseado em denúncias recebidas pelo Disque100 indica que a probabilidade de um praticante de religiões afro-brasileiras sofrer com atos de discriminação religiosa é 130 a 210 vezes maior do que para a população em geral.
Os problemas acontecem em toda a América Latina – às vezes de forma surpreendente para nós. No México, só nos últimos anos, três padres foram assassinados e outros dois foram sequestrados. Além disso, várias igrejas foram atacadas, até com granadas. Pastores e famílias de outras denominações cristãs também foram atacados. Os autores dos atentados parecem ser principalmente cartéis do tráfico de drogas incomodados com a condenação dos cristãos ao tráfico. Na Colômbia, que ainda não superou a situação da guerra civil, grupos armados forçam populações indígenas cristãs a voltar a suas crenças tribais. Chegaram inclusive a assassinar o pastor de uma Igreja neopentecostal... No Chile, em meio aos protestos contra o governo, pelo menos 57 igrejas (51 católicas e seis evangélicas) foram alvo de atos de vandalismo desde outubro de 2019.
Em muitos países da América Latina, os ataques estão associados a questões políticas e culturais. Mesmo no Brasil, sacerdotes católicos considerados “progressistas” passaram a ser hostilizados e receberem ameaças por “traírem a sua fé”. Numa outra vertente, na Venezuela, onde bispos, padres e muitos católicos têm se colocado numa postura crítica a Nicolás Maduro, igrejas foram atacadas por simpatizantes do governo – com o beneplácito das autoridades. Na Nicarágua, que vive uma situação política similar à da Venezuela, um pastor evangélico e a sua família morreram queimados em casa, num ataque imputado a agentes da polícia. O governo também interferiu com a procissão católica pela paz, tradicionalmente realizada no dia 1º de janeiro. Foram contabilizados 22 atos de vandalismo e profanações de igrejas no país entre dezembro de 2018 e julho de 2020. Em Cuba, ainda que não existam, num período recente, casos de agressões como essas já comentadas, não existe liberdade religiosa e todas as Igrejas encontram-se sobre a tutela do Estado. Os católicos já contam com estruturas tradicionais, anteriores ao regime, mas as novas denominações pentecostais encontram grande dificuldade para se estabelecer.
Os cristãos têm direito à liberdade de opinião, tanto em questões políticas quanto culturais. Podemos considerar que nossos irmãos têm ideias equivocadas ou até mesmo que estão traindo sua fé, mas nada disso justifica a violência e a opressão. O mais escandaloso, nos casos acima de ataques a cristãos, é que – na maior parte dos casos – trata-se de ataques perpetrados por outros cristãos (cerca de 88% da população do continente é cristã), por conta de suas diferenças ideológicas. Não podemos, em nenhuma hipótese, deixar que a raiva ou os interesses particulares se sobreponham ao diálogo e ao desejo de comunhão fraterna. Não podemos deixar que ideologias, estejam no poder ou na oposição, definam nosso comportamento no lugar do Evangelho.
Em quase todos os países do continente, nos círculos intelectuais e na mídia, é frequente uma “perseguição educada”, que é como o Papa Francisco se refere ao cancelamento cultural a que muitos cristãos estão sujeitos. É uma postura que não realiza a perseguição física ou institucional declarada, mas não admite o direito de expressão dos cristãos em questões como o aborto (caso característico da Argentina, nesse período) ou ridiculariza valores caros ao cristianismo (como acontece frequentemente no Brasil, na época do Natal).
A justificativa, para esses ataques, é que os cristãos são intolerantes ou contrários à liberdade das pessoas. Contudo, frequentemente trata-se da negação de qualquer defesa à dignidade da pessoa humana e ao valor da vida que entre em choque com a mentalidade individualista e à lógica mercantil, hegemônicas em nossas sociedades.