A regra é clara: é estritamente proibido um gato ou um cachorro entrar nos prédios do Vaticano.
Mas o único Estado no mundo oficialmente desprovido de quaisquer representantes das raças caninas e felinas teria problemas com os dois melhores amigos do homem?
Não, mas regra é regra, e resulta de um raciocínio prático e simples: o Vaticano é, para quem o frequenta diariamente, um local de trabalho e fé e, portanto, pouco compatível com latidos, miados e excrementos de animais.
Em 2014, uma organização italiana pró-animal implorou ao Papa Francisco que abrisse suas portas para companheiros de quatro patas. Mas não teve sucesso. Alguns críticos consideram que esta proibição fala muito sobre o relacionamento turbulento da Igreja Católica com as "bestas" do Apocalipse.
No Apocalipse, João profetiza que os cães permanecerão “fora” da Jerusalém Celestial, assim como os "envenenadores, os impudicos, os homicidas e os idólatras".
“Cuidado com esses cães”, adverte São Paulo em uma carta aos filipenses. No Antigo Testamento não é diferente: o cão é a encarnação da impureza, pois “volta ao seu vômito".
E os gatos? Eles são considerados animais pagãos por excelência e simplesmente estão ausentes das Escrituras. O Papa Gregório IX dizia que o gato era uma das duas encarnações do demônio - junto com o sapo. Em sua famosa bula Vox in Rama (1233), Ugolino d'Anagni declarou que um gato preto “do tamanho de um cachorro” apareceria como a encarnação do demônio durante a festa que coroava o sabá das bruxas.
A má impressão do animal permaneceu ancorada na memória coletiva, e foi reforçada em 1484, com a Summis desiderantes afetibus de Inocêncio VIII. Nesta bula, o gato preto é mencionado como um aliado das bruxas e do diabo.
Mas esse sentimento em relação aos gatos é mais uma questão de lenda negra do que de história de fato. E, embora as advertências contra o comportamento idólatra em relação aos animais e a zoofilia continuem a ser emitidas pelos sucessores de Gregório IX e Inocêncio VIII, seu magistério não trataria mais especificamente sobre o destino de cães e gatos. Por volta de 1520, é a “raposa traiçoeira que assola a vinha” que o Papa Leão X ataca em sua bula Exsurge Domine, denunciando as teses heréticas de Martinho Lutero.
Na história dos Papas, Bento XVI é, provavelmente, um dos melhores amigos dos animais, principalmente dos gatos e cães. Seu secretário pessoal, Pe. Alfred Xuereb, relata que, como cardeal, Joseph Ratzinger “às vezes parava na rua para conversar com gatos”.
Seu ex-secretário de Estado, Tarcisio Bertone, vai além, dizendo que o religioso alemão falava com os animais em uma língua que não era nem alemão nem italiano ... Não estamos longe de São Francisco de Assis falando com os pássaros!
Quanto aos cães, vemos que Bento XVI não aplicou com muita firmeza as regras do Vaticano. O cardeal Domenico Calcagno, ex-presidente da Administração do Patrimônio da Santa Sé, aproveitou-se disso. Este homem humilde, apesar da importância de sua posição, foi apelidado por seus pares de “cardeal camponês”.
Depois de receber sua pesada carga de Bento XVI, o prelado italiano ficou com o coração partido ao saber que ele tinha que se separar de sua cadela Diana, de 11 anos. Foi demais para ele. E, apesar da lei, conseguiu que a cadelinha fosse registrada nos serviços de segurança da Guarda Suíça, como se fosse uma empregada.
Devido ao seu status de "cadela do cardeal", Diana pode desfrutar dos jardins do Vaticano por alguns anos, disse o cardeal Calcagno ao Paris Match em 2017. Quando o animal morreu, o cardeal disse que contou com o apoio emocional de dois Papas, já que Francisco e o Papa Emérito Bento XVI, dirigiram-lhe palavras para aliviar sua dor.
Como pastores da Igreja, os Papas sempre tiveram um rebanho muito grande para guiar para se dedicar a mais um animal, seja gato ou cachorro. Mas há algumas exceções. A tradição nos diz, por exemplo, que Gregório I, o Grande, não tinha posses, mas tinha um gato por companhia.
O mais famoso dos gatos papais é sem dúvida Micetto (“Kitty” em italiano), o gato de Leão XII, um felino com um destino extraordinário. Nascido no Vaticano, no início era apenas um simples gato de rua. No entanto, um dia ele conseguiu chamar a atenção do chefe da Igreja Católica.
Homem de firmeza, marcado pelos sofrimentos decorrentes da Revolução Francesa, Leão XII foi um governante implacável e, muitas vezes, severo. Defendia o retorno à ordem moral. Naqueles anos, Micetto era um dos poucos a revelar uma certa ternura ao Soberano Pontífice.
O gato o acompanhava por toda parte, enrolado nele durante as audiências. Em uma delas, o embaixador francês François-René de Chateaubriand teve a chance de conhecer o felino papal. Em um de seus livros, o escritor conta como o "gato do Papa" se comportava com extrema consideração perto das almas piedosas. Leão XII decidiu deixar seu animal de estimação ao francês, que cuidaria dele até sua morte.
Hoje, alguns gatos, apesar da proibição, conseguiram se estabelecer nos jardins do Vaticano. Seus companheiros cães, no entanto, não tiveram tanta sorte e permanecem nos portões. Mas existe uma exceção.
Na verdade, todas as áreas do Vaticano estão abertas aos cães que acompanham os cegos. Servos fiéis por excelência, alguns desses cães foram recebidos com seus donos pelo atual Papa, que não hesitou em abençoá-los.
Como seu ancestral, o lobo de Gubbio, domesticado pelo Poverello de Assis, o melhor amigo do homem também encontrou lugar com outro Francisco!