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Armas e legítima defesa na doutrina social da Igreja: uma confusão típica de nossos tempos

WAR, WEAPON
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Francisco Borba Ribeiro Neto - publicado em 24/10/21
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A pouca eficiência da segurança pública nos leva a imaginar uma espécie de faroeste, onde homens armados protegem a si e seus entes queridos

Um trocadilho sem dúvida provocativo, mas perfeitamente sintonizado com a doutrina da Igreja, “pátria amada não pode ser pátria armada”, proferido pelo arcebispo de Aparecida dom Orlando Brandes, no último 12 de outubro, tem causado furor nas redes sociais e nos meios políticos. Para piorar, muitos têm usado, de forma descontextualizada, a citação de um documento do Pontifício Conselho Justiça e Paz, de 1994, Comércio internacional de armas. Uma reflexão ética (erroneamente atribuída a São João Paulo II):

“Em um mundo onde o mal e o pecado subsistem, existe o direito à legítima defesa pelo uso das armas. Este direito pode tornar-se um sério dever para aqueles que são responsáveis ​​pela vida dos outros, pelo bem comum da família ou da sociedade. Somente este direito pode justificar a posse ou transferência de armas. Mas não é um direito absoluto, mas vem acompanhado do dever de fazer todo o possível para minimizar e, mais ainda, eliminar as causas da violência”.

A confusão é típica de nosso tempo, dominado por fake news, “pós-verdades” e discursos carregados de raiva e ressentimento. Por isso, precisamos entender com precisão o que a Igreja aprendeu e repete ao longo de sua história, o que são entendimentos nascidos da análise da realidade e o que são posturas ideológicas nesse debate.

No Evangelho

Cristo não é um ingênuo, que imagina um mundo sem conflitos. No Evangelho, afirma que não veio trazer a paz, mas a espada (Mt 10, 34). O próprio Papa Francisco, famoso por suas exortações ao diálogo e à reconciliação, considera que o conflito é parte da nossa vida e não pode ser ignorado (cf. Fratelli tutti, FT 237-240).

Contudo, no Sermão das Bem-aventuranças, Jesus exalta os mansos (Mt 5, 5), manda amar os inimigos; oferecer a outra face; a quem nos pedir a túnica, entregar também o manto (Mt 5, 38-44). Ele próprio se declara manso e humilde de coração, pedindo aos seus discípulos que sigam seu exemplo (Mt 11, 29). São declarações que apontam para uma forma de superação dos conflitos que hoje denominamos de “não-violenta”.

São João Paulo II considera a não-violência como um valor proposto pela vida e mensagem de Cristo (Discurso aos Juristas Católicos Italianos, de 1980, n. 4). Para ele, a forma cristã de combater a violência na sociedade não está numa oposição violenta aos violentos, nem numa não-violência que apenas nega a violência, mas sim na construção de uma “civilização do amor”. Bento XVI explicou que não se trata de deixar-se dominar pelos maus, mas sim em responder ao mal com o bem, num “modo de ser pessoa” baseado no amor. 

Essa não é uma utopia inatingível, mas um princípio ideal que pode orientar a construção de um sistema de segurança pública que preserva os direitos e a dignidade de todos.

A Igreja e o desarmamento

A questão das armas e da legítima defesa há muito preocupa a Igreja, principalmente na perspectiva da paz entre as nações (cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, CDSI 508-512). Os países têm o direito e o dever de ter as armas necessárias para garantir a sua autodefesa, mas a Igreja sempre se preocupou com uma corrida armamentista na qual cada país quer ter mais armas do que o outro – optando pela guerra em função do seu poderio bélico, desistindo das negociações que levariam à paz. Além disso, a compra de armas drena recursos que deveriam ser usados para garantir o desenvolvimento e o bem-estar das populações. Além disso, o preço das armas é um fator proibitivo, então os pobres (pessoas ou países) não ficam ainda mais indefesos diante dos ricos e poderosos?

Quem compra armas, imagina que vai usá-las. Portanto, quanto maior o número de armas disponíveis, maior o perigo de uma ação violenta. A lógica vale para as nações, mas também pode ser aplicada aos indivíduos. Quem compraria muitas armas se não pretendesse usá-las? Todos que têm armas, têm também a habilidade e o bom senso necessários para seu uso responsável?

A Igreja não quer proibir a posse de armas, seja por um país ou por um indivíduo, reconhece inclusive o perigo de um desarmamento assimétrico entre as nações. Contudo, considera que a paz não pode ser construída com base num equilíbrio de forças onde cada um se sente ameaçado pelo outro, e sim numa opção pela negociação pacífica e pelo entendimento. De forma análoga, podemos pensar também que a ideia de que os ladrões deixarão de nos roubar porque têm medo de nossas armas é um pouco fantasiosa. O mais provável, numa sociedade fortemente armada e na qual não existe um bom sistema de segurança pública, é que os assaltos se tornem mais violentos e as mortes aumentem.

E a legítima defesa, como fica?

O Catecismo da Igreja Católica (CIC 2258-2317) explica que todos os seres humanos têm direito à legítima defesa, que é uma consequência do próprio direito à vida. Mais: é um dever de cada um de nós defender a própria vida e a vida dos demais. Conforme o trecho citado no início, “em um mundo marcado pelo mal e pelo pecado, existe o direito à legítima defesa com armas e por motivos justos”. Contudo, seu sentido não é incentivar o uso de armas, mas restringi-lo... É uma alternativa que depende de um “motivo justo” e, como o texto diz em continuação, “acompanhada do dever de fazer todo o possível para minimizar e, além disso, eliminar as causas da violência”.

Bento XVI fala em “princípio da suficiência”: devemos ter apenas as armas necessárias para garantir nossa segurança. São João Paulo II considera que a paz não seria conseguida enquanto “a segurança baseada nas armas não for gradualmente substituída pela segurança baseada na solidariedade”.

Qual a melhor forma de garantir a segurança dos cidadãos?

O problema real não é doutrinal, mas prático: qual a melhor forma de garantir a segurança dos cidadãos? A Igreja reconhece o direito da população se armar se for necessário para garantir sua segurança; mas, se houver alternativas, a Igreja indica essas outras formas.

O Estado moderno se desenvolveu a partir da ideia de que o monopólio da força e a responsabilidade pela segurança da população cabia ao governo e não aos indivíduos. A história do Ocidente indica que essa foi a melhor alternativa para garantir o bem comum. Analisemos. A probabilidade de um cidadão armado, mesmo que treinado, mas pego de surpresa, conseguir vencer um criminoso armado é muito pequena. O que dará mais segurança para nós, nossas famílias e nossos jovens: todos usarem armas e se predisporem a atirar em criminosos ou a polícia ser mais eficiente e prender os meliantes? 

A pouca eficiência da segurança pública no Brasil nos leva a imaginar uma espécie de faroeste, onde homens armados protegem a si e seus entes queridos. Mas, até nesse mítico mundo hollywoodiano as armas não trazem segurança para os fracos, que permanecem constantemente intimidados por pistoleiros e assaltantes. Mesmo nesse universo, é a chegada da lei e não a força dos indivíduos que garante a segurança para todos.

Comparações internacionais não mostram que o aumento do número de armas entre a população aumente ou diminua o número de mortes violentas. Na verdade, a violência e sua letalidade dependem de muitos fatores, como a ação do crime organizado, a eficiência da polícia, condições socioeconômicas e infraestrutura urbana.

Por todos esses fatores, a reivindicação mais efetiva para garantir a segurança da população é aumentar a eficiência das organizações de segurança pública e não o número de armas disponíveis.

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