O contexto mundial tornou cada vez mais premente o debate sobre os chamados programas de renda mínima, políticas sociais que garantem remuneração mínima para a pessoa – mesmo que não tenha trabalho. Existem várias modalidades possíveis para esses programas, com o Seguro-Desemprego, que atende os que perderam o emprego por um curto período, para que possam se recolocar no mercado; o Auxílio Emergencial, criado em função de uma crise como a do coronavírus; o Bolsa-Família, que se mantém por um período maior, para garantir a escolarização das crianças; e, agora, o Auxílio Brasil. Muitas vozes têm se levantado contra esses auxílios, alegando que são assistencialistas e populistas; enquanto outras, como as de alguns empresários do setor de alta tecnologia, os defendem, de forma até surpreendente.
Antes de entender o que a doutrina social da Igreja diz sobre esse tema, temos que entender o que está acontecendo para esses auxílios terem entrado na ordem do dia.
A crise do trabalho
A chamada “Quarta Revolução Industrial”, que vivemos atualmente, com a introdução crescente de robôs e sistemas de inteligência artificial, tem um grande impacto no mercado de trabalho. Máquinas substituem trabalhadores humanos, com ganhos de eficiência e redução de custos, gerando desemprego. A sociedade, dizem os otimistas, irá reequilibrar essa situação, com a criação de novas atividades, redução das jornadas de trabalho e aumento do espaço para o lazer. Mas todos concordam que isso não acontecerá com rapidez suficiente e teremos, por um período relativamente longo, grandes massas de desempregados.
A pandemia acelerou o processo e suas consequências mais nefastas. Com as pessoas em casa, máquinas, sistemas de automação e relações virtuais substituíram o trabalho presencial e desempregaram parte significativa da população. Não foi apenas um evento transitório, como a pandemia em si, mas a aceleração de um processo que já estava em curso, razão pela qual a retomada dos empregos, em alguns setores, poderá nunca mais ocorrer.
O desemprego elevado não é apenas um problema humanitário. Ele tem consequências políticas, aumentando a insatisfação dos cidadãos e levando à instabilidade dos governos. A própria economia pode entrar em recessão, pois não adianta produzir mais se não existem pessoas com dinheiro para comprar. Por isso, governos e empresários passaram a apoiar programas de renda mínima, que cumpririam não apenas uma função humanitária, mas também política e econômica.
O risco do assistencialismo
Esses programas, contudo, podem ter duas consequências negativas. O primeiro é sua utilização populista e assistencialista. Nesse caso, os programas não servem a uma verdadeira promoção humana, mas apenas aumentam a dependência dos pobres em relação ao governo, facilitando a manipulação política e não permitindo que as pessoas desenvolvam plenamente seu potencial, sua autonomia e sua liberdade.
O perigo é real, mesmo que talvez não aconteça com frequência. Ficaram famosas no imaginário de algumas pessoas as comunidades de desempregados que viviam de auxílios governamentais nos países ricos, na segunda metade do século passado. Os estudos mostram, porém, que as populações assistidas por esses programas na maior parte dos casos lutam por sair da situação de dependência e se valem desses auxílios para conseguir situações de vida melhores. No Brasil, por exemplo, cerca de 69% dos primeiros beneficiados com o Bolsa Família não estão mais no sistema, porque conseguiram condições melhores de vida e trabalho.
Para que um desses programas não descambe para o assistencialismo e o populismo é o progresso socioeconômico que permite a geração de novas oportunidades de trabalho e a formação dessa população assistida, para que possam ocupar esses postos de trabalho. Quando essas condições existem, as pessoas preferem um trabalho digno e uma remuneração adequada à condição precária dos auxílios de renda mínima.
A inflação que corrói o auxílio
O segundo problema desses programas é seu impacto nas contas públicas. A polêmica atual sobre o Auxílio Brasil, que deverá ser implementado em substituição ao Bolsa Família em 2022, não diz respeito a sua razão de ser, mas sim a seu impacto sobre os cofres do governo. A questão é simples: quando o governo gasta mais do que arrecada, tem que contrair empréstimos e/ou aumentar a inflação. A capacidade de endividamento tem limites, pois em algum momento o empréstimo tem que ser pago. Quando isso acontece, como no Brasil, nesse momento, os gastos acima da arrecadação geram inflação, que corrói o poder de compra dos salários e compromete a economia, gerando mais desemprego e menor poder de compra. Resultado: o que se esperava ganhar socialmente com o programa de renda mínima é perdido pela crise econômica.
Isso não significa que se deve abandonar esses programas sociais, mas sim que eles devem ser planejados dentro de uma visão realista das contas públicas. Sempre se pode perguntar se não há outros setores da ação do Estado que podem sofrer cortes sem prejudicar as populações mais necessitadas. Além disso, os escândalos de corrupção, as notícias de altos salários e mordomias de funcionários públicos e políticos aumentam ainda mais o desconforto e o impacto negativo do déficit público.
A palavra da Igreja
Papa Francisco tem se posicionado frequentemente em defesa de programas de renda mínima, deixando claro que esses programas devem ser planejados de forma realista e evitando o assistencialismo.
Numa mensagem aos movimentos sociais, disse: “Um rendimento mínimo [...] para que cada pessoa neste mundo tenha acesso aos bens mais elementares da vida. É correto lutar por uma distribuição humana destes recursos. E é tarefa dos governos estabelecer esquemas fiscais e redistributivos para que a riqueza de uma parte seja partilhada equitativamente, sem que isso implique um fardo insuportável, especialmente para a classe média, que geralmente, quando existem estes conflitos, é a que mais sofre.”
Na Fratelli tutti (FT 161-162) acrescenta: ““Longe de mim propor um populismo irresponsável [...] Os planos de assistência, que acorrem a determinadas emergências, deveriam considerar-se apenas como respostas provisórias. A grande questão é o trabalho”.
São indicações claras para quem deseja enfrentar esse grande problema de nosso tempo numa perspectiva verdadeiramente cristã.