Como fazia todas as noites, uma pequena família católica na República Socialista Soviética da Ucrânia sentava-se em sua sala de estar, assistindo ao noticiário da noite. Era 16 de outubro de 1978, e o locutor disse que naquele dia, no Vaticano, um bispo da Polônia havia sido eleito como o novo Papa. Ele tomou o nome de Papa João Paulo II.
O único filho da família na época era um menino de oito anos chamado Sviatoslav Shevchuk. Ele e sua família, embora vivendo sob um regime ateu, estavam bem cientes sobre o Vaticano. Como sua Igreja havia sido ilegalizada em 1946, eles ouviam secretamente a Divina Liturgia transmitida todos os domingos pela Rádio Vaticano. Shevchuk passaria a estudar para o sacerdócio em um seminário clandestino. Hoje, como arcebispo de Kiev-Halych, ele é o chefe da Igreja Greco-Católica Ucraniana.
Ao relatar a história a este escritor em uma entrevista de 2019, Shevchuk lembrou que um de seus avós comentou sobre as notícias daquela noite de 1978: “Algo vai mudar no mundo”.
Mudança
A maioria das pessoas acreditava que o império soviético, uma das duas superpotências do mundo, era praticamente indestrutível. Mas os pais e avós da família Shevchuk reconheceram que uma rachadura havia se desenvolvido.
“Se alguém da parte soviética e comunista do mundo foi escolhido para ser o chefe da Igreja Católica, e eles o deixaram ir, é porque eles [os comunistas] não são todo-poderosos”, argumentaram os anciãos, de acordo com Shevchuk. “Algo vai mudar... Da TV você podia perceber a emoção do medo, e do público a emoção da esperança.”
Católicos e entusiastas da liberdade em todo o império soviético teriam que ser pacientes em relação à mudança, e ainda assim haveria muito sofrimento. Mas, em retrospecto, é surpreendente pensar que foi apenas 13 anos após a eleição de Karol Wojtyla como papa que a outrora poderosa União Soviética desmoronou.
O líder soviético Mikhail S. Gorbachev renunciou ao cargo de presidente da URSS, e a bandeira vermelha foi retirada do Kremlin em 25 de dezembro de 1991. Este Natal marca o 30º aniversário da dissolução da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Natal
Embora não tenha sido o dia de Natal na Rússia, onde os ortodoxos celebram o Natal em 7 de janeiro, de acordo com o calendário juliano, os eventos devem ter sido como um presente de Natal para pessoas como o Papa João Paulo II, Ronald Reagan, Margaret Thatcher, Lech Walesa e outros que dedicaram grande parte de suas vidas a derrotar o comunismo. Sem falar dos milhões de católicos que rezavam Terços - há décadas - pela conversão da Rússia.
E, para os shevchuks e milhões de pessoas de fé em toda órbita soviética, houve a restauração da liberdade religiosa, que já vinha crescendo lenta mas firmemente.
Os historiadores reconhecem que múltiplos fatores contribuíram para o desaparecimento da União Soviética, incluindo más condições econômicas na própria URSS. Reagan e Thatcher recebem regularmente crédito por ajudarem a impulsionar o que foi considerado uma queda inevitável.
Mas o Papa João Paulo II também desempenhou um papel importante e indispensável, que era principalmente moral e não político. Sua contribuição para a queda do comunismo soviético está bem documentada na biografia de dois volumes de George Weigel sobre o papa, Witness to Hope e The End and the Beginning.
Nove dias que mudaram o mundo
Um evento central nessa história foi a visita histórica do papa à sua terra natal em junho de 1979 [na foto ao início do artigo, João Paulo II aparece falando com o chefe do Partido Comunista da Polônia, Edward Gierek.] Por quê? Embora a Polônia não fizesse parte da URSS, era governada por um regime comunista que respondia a Moscou.
“Ele reconheceu e disse, muito antes de qualquer outra pessoa, que se tratava de um conflito espiritual, ou seja, que na raiz do conflito entre o comunismo e o resto do mundo não estava a política nem o poderio militar; estava um conflito espiritual”, explica Barbara J. Elliott, professora da Houston Baptist University.
“Quando ele contextualizou o problema dessa maneira em 1979, ele acendeu o longo pavio que detonou 10 anos depois com a queda o Muro de Berlim. Mas ele fez isso entre seu próprio povo na Polônia, lembrando-lhes quem eles eram, que eram filhos de Deus, criados com dignidade e responsabilidade, e que deveriam ser livres. E que, ao resistir ao comunismo, eles teriam de fazê-lo de forma responsável, pacífica, e superando o mal com o bem.”
Ex-repórter da PBS na Europa, Elliott trabalhou com refugiados na Alemanha vindos do leste da Cortina de Ferro e depois viajou para a Rússia, Alemanha Oriental, Polônia e Hungria para entrevistar pessoas que resistiram ao comunismo por causa de sua fé. Ela contou suas histórias em Candles Behind the Wall: Heroes of the Peaceful Revolution that Shattered Communism.
Crescendo sob o comunismo
Ao examinar o papel do papa na queda do comunismo soviético, não se deve ignorar o óbvio: que Karol Wojtyla estava intimamente familiarizado com o regime por ter vivido sob o sistema marxista-leninista que governou seu próprio país a partir da Segunda Guerra Mundial.
Como Lee Edwards, cofundador da Victims of Communism Memorial Foundation, escreveu, ao comparar o interesse de Reagan no assunto com o de Wojtyla, “no final dos anos 1940 e início dos anos 1950 — quando o ator Ronald Reagan estava lutando contra os comunistas em Hollywood — o padre Wojtyla confrontava persistentemente os esforços dos governantes stalinistas da Polônia em reinventar a história e a cultura do país. Na década de 1960 — quando o governador Reagan estava confrontando a violência de inspiração radical nas universidades da Califórnia — o bispo Wojtyla lembrava aos poloneses que, em seus mil anos de história, muitas vezes eles tiveram de arrancar a liberdade do subsolo. Na década de 1970 — quando o candidato presidencial Reagan persistia em chamar a União Soviética de “mal” e de um império — o cardeal Wojtyla entrava em contato com intelectuais dissidentes poloneses como parte de seu esforço para construir, nas palavras de George Weigel, “uma corrente de resistência cultural” ao regime comunista. Onde quer que ele fosse e onde quer que estivesse, o cardeal polonês destemidamente desafiava o que Vaclav Havel chamou de “uma cultura de mentiras”. Ele efetivamente articulou uma alternativa cristã ao falso humanismo do comunismo.”
Durante o conclave que o elegeu papa, o cardeal Wojtyla estava lendo um jornal filosófico marxista durante a contagem de votos, de acordo com Weigel.
Mas os nove dias que ele passou em sua terra natal acabaram sendo tão importantes que até mesmo um historiador secular como John Lewis Gaddis, de Yale, reconheceu isso como um ponto de virada. Em The Cold War: A New History, Gaddis escreve que “quando João Paulo II beijou o chão no aeroporto de Varsóvia em 2 de junho de 1979, ele começou o processo pelo qual o comunismo na Polônia - e, finalmente, em todos os lugares - chegaria ao fim”.
Gaddis acredita que, enquanto “as formas materiais de poder” que os Estados Unidos e a União Soviética abraçavam, como sua força militar, começaram a “perder sua potência” no início da década de 1980, o poder real repousava “com líderes como João Paulo II, cujo domínio do intangível – de qualidades como coragem, eloquência, imaginação, determinação e fé – permitiu-lhes expor disparidades entre o que as pessoas acreditavam e o sistema sob o qual a Guerra Fria os obrigava a viver. As lacunas foram mais gritantes no mundo marxista-leninista: tanto que, quando totalmente expostas, não havia como fechá-las além desmantelar o próprio comunismo e, assim, acabar com a Guerra Fria.”
Os poloneses, já orgulhosos de terem um deles sentado na cátedra de Pedro, estavam prontos para receber seu filho favorito. Multidões acabaram ouvindo-o, e milhões mais ouviram suas palavras na televisão.
Ao longo do sermão do papa na Praça da Vitória de Varsóvia, em 2 de junho de 1979, a multidão respondeu ritmicamente: “Queremos Deus, queremos Deus, queremos Deus na família, queremos Deus nas escolas, queremos Deus nos livros, queremos Deus, queremos Deus...”
“Sete horas depois de chegar, uma verdade crucial ficou clara pela resposta de um milhão de poloneses à evangelização de João Paulo”, observa Weigel em Witness to Hope. “A Polônia não era um país comunista; a Polônia era uma nação católica obrigada a carregar um estado comunista.”
Uma revolução de consciência
A peregrinação de 1979 provocou uma revolução, escreve Weigel. O sindicato polonês Solidariedade, que desempenhou um papel fundamental na derrota final do regime em Varsóvia, nasceu em seu rastro. Uma peregrinação papal subsequente à Polônia, em 1983, ajudou a manter viva a revolução. E uma terceira, em junho de 1987, “foi destinada a preparar o terreno para a vitória da revolução e identificar as questões básicas que a futura Polônia livre enfrentaria”, afirma o autor.
Perto do final da década, o impulso aumentou acentuadamente. Weigel diz em Witness: “O que parecia imutável desde a Segunda Guerra Mundial - a hegemonia soviética sobre o último grande império político do mundo e o domínio dos comunistas dentro dos estados vassalos desse império - começou a mudar com rapidez impressionante em abril de 1988.”
Uma série de eventos aconteceu naquele e no ano seguinte: os soviéticos se retiraram do Afeganistão. Gorbachev prometeu uma nova lei sobre liberdade de consciência. As repúblicas bálticas fizeram movimentos em direção à independência. Gorbachev anunciou grandes cortes nas forças armadas soviéticas. A Hungria permitiu partidos de oposição. A Tchecoslováquia teve sua “Revolução de Veludo”.
Na pátria do papa, o governo reconheceu legalmente o Solidariedade, cujo partido cresceu muito nas primeiras eleições semi-livres da Polônia. Mais tarde, em 1989, o membro do Solidariedade Tadeusz Mazowiecki se tornou o primeiro primeiro-ministro não comunista de um país do leste da Europa Central em 40 anos.
Enquanto isso, os alemães orientais que se refugiaram na Hungria conseguiram escapar para o Ocidente quando aquele país abriu sua fronteira com a Áustria. Outros fluíram de Praga e Varsóvia para a Alemanha Ocidental. Finalmente, em 9 de novembro de 1989, o infame Muro de Berlim caiu.
Em meio a esse frenesi, em 1o de dezembro de 1989, Gorbachev visitou João Paulo no Vaticano. Na caracterização de Weigel, “o representante do maior experimento mundial em humanismo ateu [um experimento social destinado a provar que o homem poderia se organizar sem Deus e que, de fato, a crença em Deus impediria a completa realização humana], a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, veio ao Vaticano recorrer ao principal representante mundial do humanismo cristão”.
Entre outras questões, o papa levantou o tópico da liberdade religiosa para os greco-católicos na Ucrânia, cuja Igreja era ilegal desde 1946.
Weigel acredita que a visita foi um “ato de rendição”. No final da visita, “Gorby”, como era frequentemente chamado no Ocidente, apresentou sua esposa ao pontífice: “Raisa Maximovna, tenho a honra de apresentar a mais elevada autoridade moral do mundo.” Ao que ele acrescentou: “e ele é eslavo, como nós!”
A bandeira desce
Várias repúblicas da URSS, como Estônia e Lituânia, estavam declarando independência da União. Em agosto de 1991, linhas-duras comunistas e elites militares, frustradas com as fracassadas medidas de reforma de Gorbachev, tentaram derrubá-lo. Gorbachev sobreviveu ao golpe, e João Paulo escreveu a ele, expressando sua esperança de que ele seria capaz de retomar sua tarefa na renovação material e espiritual da União Soviética. Mas no dia seguinte, Gorbachev renunciou ao cargo de Secretário-Geral do Partido Comunista da União Soviética.
Muitas repúblicas, incluindo a Ucrânia, declararam independência nos dias e meses seguintes. A secessão dos estados bálticos foi reconhecida em setembro de 1991
No final de 1991, os líderes de três das repúblicas fundadoras da União – Rússia, Ucrânia e Bielorrússia – formaram a Comunidade de Estados Independentes, e mais 11 repúblicas se juntaram a elas pouco depois. O Cazaquistão foi a última nação a deixar a União Soviética.
Em 25 de dezembro, Gorbachev renunciou e entregou seus poderes presidenciais a Boris Yeltsin. Naquela noite, às 19:32, a bandeira vermelha soviética foi abaixada do Kremlin pela última vez e substituída pela bandeira tricolor russa. No dia seguinte, a Declaração 142-Н do Soviete Supremo reconheceu a independência autônoma das ex-repúblicas soviéticas, dissolvendo formalmente a União.
A URSS existia desde 1922, cinco anos após a Revolução Bolchevique e dois anos após o nascimento de Karol Wojtyla em Wadowice, Polônia.
“Pode ser tentador caracterizar o Papa João Paulo II como o inimigo político que venceu o comunismo. Mas isso não seria verdade”, escreveu Barbara Elliott. “Sua posição desafiou o comunismo no reino metafísico, não na arena política. Sua mensagem nunca foi uma que defendesse posicionamento político. Em vez disso, ele entendeu que o erro do comunismo estava em sua visão fundamental do ser humano, que não é apenas uma unidade de trabalho envolvida em uma luta de classes perpétua, como Marx afirmou, mas uma criatura feita à imagem de Deus, com alma e um destino eterno. João Paulo II nunca tirou os olhos de Deus, seu coração e mente tinham uma bússola apontando para o verdadeiro Norte. Ele encorajou as pessoas a amarem a Deus mais profundamente, a valorizarem as relações com as pessoas queridas e a obedecerem a Deus com confiança. Ele desafiou o comunismo de joelhos, rezando a Deus: 'Seja feita a Vossa vontade'".