Transplante de coração de porco para um ser humano: o procedimento, realizado pela primeira vez na história, tem chamado fortemente as atenções da sociedade não apenas no país em que o caso aconteceu, mas no mundo inteiro.
O protagonista do inédito avanço na técnica de transplantes é David Bennett, 57 anos, morador de Maryland, nos Estados Unidos. Ele tinha uma doença cardíaca terminal e o órgão animal era "a única opção disponível atualmente", de acordo com uma nota à imprensa divulgada nesta segunda, 10 de janeiro, pela Escola de Medicina da Universidade de Maryland. O mesmo comunicado informava que David apresentava boa evolução três dias após ter recebido o coração de um porco geneticamente modificado.
Transplante ou morte
Pouco antes da cirurgia, o próprio David havia resumido de modo categórico a sua situação:
De fato, os médicos haviam descartado definitivamente a possibilidade de um transplante de coração convencional ou o uso de uma bomba de coração artificial: o caso de David era realmente crítico.
Diante do panorama, a Food and Drug Administration, equivalente norte-americano à Anvisa no Brasil, autorizou em 31 de dezembro de 2021 que a cirurgia fosse realizada em caráter de emergência.
Os médicos manterão um monitoramento detalhado ao longo das próximas semanas para analisar o grau de sucesso do transplante e como o organismo de David reage ao órgão suíno. A equipe médica removeu três genes responsáveis pela rejeição de órgãos de porco pelo sistema imunológico humano, retirou outro gene para impedir o excessivo crescimento de tecido cardíaco suíno e inseriu seis genes humanos que potencializam a aceitação imune.
Escassez de órgãos humanos para transplante
O professor de bioética Art Caplan, da Universidade de Nova Iorque, se declarou "um pouco apreensivo" ao saber do primeiro transplante de coração de porco para um ser humano, mas admitiu que os Estados Unidos sofrem de uma "escassez terrível" de órgãos humanos para transplantes e que o recurso a órgaõs e tecidos de animais é uma solução, desde que fundamentada em sólidas pesquisas que visem garantir o máximo sucesso possível "com o mínimo de danos aos primeiros voluntários".
Há, realmente, nada menos que 106.657 pessoas na fila de espera por transplantes só nos Estados Unidos, das quais, infelizmente, morrem em média 17 por dia sem conseguirem receber o órgão a tempo. Os dados são do governo do país.
O uso de válvulas cardíacas de porco transplantadas para humanos já era uma realidade havia anos, mas o transplante de um coração de porco jamais tinha sido tentado até agora.
Para Art Caplan, ainda não é possível afirmar que o transplante foi um sucesso: dependerá da qualidade de vida que David obtenha e mantenha ao longo do tempo. Como quer que seja, o procedimento inédito fornecerá aprendizados cruciais para o aprimoramento da técnica e para o seu uso em novos transplantes. Ele acrescenta que outra questão ética essencial é a do consentimento: um paciente em risco iminente de morte tenderá a concordar com a cirurgia como única alternativa, mas este consentimento nestas circunstâncias será moralmente suficiente?
Transplantes de órgãos: a Igreja tem alguma objeção?
O primeiro transplante de coração de porco a um ser humano também desperta a atenção dos católicos no tocante a como este procedimento é encarado pela doutrina da Igreja.
Como critério geral, a Igreja Católica não tem objeção à doação de órgãos em si, e, portanto, nem aos transplantes de órgãos: pelo contrário, a Igreja apoia e faz campanhas favoráveis à conscientização e ao engajamento dos católicos nesta causa que salva vidas.
Entretanto, assim como em qualquer outra prática científica, a doutrina católica evidentemente reforça que os meios utilizados precisam ser acordes à moral, e, neste sentido, contribui com o esclarecimento de princípios fundamentais.
As considerações mais básicas dizem respeito, é claro, à doação de órgãos humanos. O número 2296 do Catecismo da Igreja Católica esclarece que a “transplantação de órgãos é conforme à lei moral se os perigos e riscos físicos e psíquicos em que o doador incorre forem proporcionados ao bem que se procura em favor do destinatário”. O mesmo número também elogia o gesto da doação de órgãos de uma pessoa falecida como “um ato nobre e meritório” e como “manifestação de generosa solidariedade”.
O critério fundamental para a doação de órgãos humanos, portanto, é o livre e consciente consentimento expresso do doador, sem o qual a doação é moralmente inaceitável. A doutrina católica também reforça que é moralmente inadmissível “provocar diretamente a mutilação que leve à invalidez ou à morte de um ser humano, ainda que isto se faça para retardar a morte de outras pessoas”: ou seja, é imoral assassinar ou abreviar a vida de alguém para destinar os seus órgãos a terceiros, por mais que estes precisem de transplante urgente.
Outro critério basilar é que, quando um órgão é proporcionado por um doador ainda em vida, não é moralmente aceitável que a doação comprometa a integridade funcional do seu organismo. Por exemplo: a doação de um rim afeta a integridade anatômica do doador, mas não necessariamente a sua integridade funcional, já que o organismo humano consegue funcionar com apenas um rim saudável. Já a doação de uma córnea por um doador em vida não é moralmente aceitável porque o levaria a perder a faculdade da visão: em tal caso, preponderaria a mutilação, que é imoral, sobre a doação.
Por fim, mas de importância determinante, é obrigatória no tocante a doadores falecidos não apenas a existência do consentimento expresso manifestado ainda em vida, mas também é crucial que os médicos constatem de modo objetivo e comprovável a morte cerebral do doador. Neste quesito, ainda persiste a necessidade de se aprofundar nos critérios empregados para atestar a morte cerebral humana.
E no caso do transplante de coração de porco em humanos?
Já em 2001, o Vaticano anunciou não ter objeções morais ou éticas ao transplante de órgãos, tecidos e células animais para seres humanos. A manifestação se deu em resposta a uma consulta do Conselho da Europa, que havia pedido que as diversas confissões religiosas declarassem a sua posição a respeito dos xenotransplantes, que são precisamente os de órgãos animais para seres humanos.
A posição da Igreja, que por extensão é aplicável também ao cenário de transplante de coração de porco em um ser humano, foi apresentada pelo monsenhor Elio Sgreccia, vice-presidente da Pontifícia Academia para a Vida, no documento “Perspectiva dos Xenotransplantes, Aspectos Científicos e Considerações Éticas”. O documento contou com a participação de especialistas como Emanuel Cozzi, do Departamento de Cirurgia da Universidade britânica de Cambridge, e Maria Luisa Lavitrano, coordenadora de projetos de transplantes de animais na Itália.
Os cientistas ligados à Igreja observaram que a ciência ainda não tem total conhecimento das implicações desses novos procedimentos, cujos estudos, em vários casos, estavam em fase preliminar. Este cenário, apesar dos avanços, continua semelhante após os 20 anos transcorridos desde então, no sentido de que ainda há muitos aspectos a serem estudados e testados.
Mesmo assim, é eticamente justificável aprovar o uso de animais em benefício humano considerando-se que, para a doutrina cristã, Deus criou e colocou os animais e outras criaturas a serviço do homem e do seu desenvolvimento. É por esta mesma razão que se considera ético, aliás, caçar, pescar ou criar animais para serem consumidos como alimentos. O que se deve evitar, como diretriz geral, é a imposição de sofrimento aos animais e a sua morte desnecessária.
No caso do transplante de órgãos de animais para pessoas, mons. Sgreccia enfatizou que, mesmo sendo um procedimento moralmente aceitável em linhas gerais, a questão requer abordagem mais aprofundada para responder a casuísticas. O mesmo vale, por exemplo, também para o caso das células-tronco: em si mesmas elas podem ser usadas, mas há muitas problemáticas ligadas à sua obtenção, sobretudo se procedentes de aborto proposital.
Vale acrescentar que o Vaticano pede especial atenção às implicações éticas dos transplantes de órgãos e tecidos de animais em crianças humanas, já que elas não podem autorizá-los com pleno entendimento. Mesmo nesses casos, a Igreja considera que cirurgias do tipo ainda podem ser aceitas moralmente quando fundamentais para salvar a vida da criança.
São João Paulo II também se pronunciou a respeito do transplante de órgãos:
“A doação de órgãos, feita segundo formas eticamente aceitáveis, merece particular apreço”, por oferecer “uma possibilidade de saúde e até de vida a doentes por vezes já sem esperança”.