Em um popular livro infantil, o personagem principal decide, depois de descobrir uma caneta dourada, começar a se referir às canetas exclusivamente como “frindles”. Rejeitando as tentativas de seu professor de inglês de abolir a palavra, o termo “frindle” pega. Com um espírito quase revolucionário, estudantes de todo o país se recusam a usar a palavra “caneta”. O epílogo do livro termina com o professor de inglês enviando ao inventor da palavra “frindle” um dicionário, que incluía sua palavra recém-criada.
O livro encantador levanta questões reais sobre a filosofia da linguagem. Quem determina o que as palavras significam? Os termos são ditados apenas pela convenção e pela cultura?
No rescaldo filosófico da Segunda Guerra Mundial, o importante intelectual católico alemão Josef Pieper tinha coisas significativas a dizer sobre a linguagem e seu abuso. As mentiras, enganos e manipulações de décadas anteriores levaram esse filósofo a responder de forma brilhante.
Em um ensaio intitulado “Abuse of Language, Abuse of Power”("Abuso de Linguagem, Abuso de Poder"), Pieper argumenta:
Precisamos de palavras! Elas não pertencem simplesmente a filósofos ou mesmo filólogos. Sem discurso e sem significado será impossível nos entendermos. Seremos incapazes de compartilhar nossas experiências do dia a dia, para não falar de perder a capacidade de manter conversas mais profundas.
O duplo propósito da linguagem
Para Pieper, “as palavras humanas e a linguagem cumprem um duplo propósito”.
Primeiramente, ele argumenta: “as palavras transmitem a realidade”. Usamos palavras para compartilhar observações, transmitir experiências, identificar as coisas como elas são. Em segundo lugar, fazemos isso para compartilhar o que é real com os outros.
Palavras que não conseguem transmitir a realidade são mentiras. Inverdades. Elas falham em fazer o que deveriam fazer! A linguagem requer fundamentação na realidade, o que requer fazer afirmações de verdade.
Vários milênios atrás, o filósofo grego Aristóteles argumentou que a “verdade” é melhor descrita como a adequação da mente à realidade. A verdade é a harmonia de pensar ou conhecer as coisas como elas são, é a conformidade do intelecto com a ordem das coisas.
As palavras - nossa linguagem - carregam essa harmonia. As palavras transmitem a verdade. As palavras importam, objetivamente, muito.
Mas as palavras também são importantes entre nós. Se não tivermos a capacidade de transmitir aos outros essa realidade, estamos falhando no uso da linguagem. As palavras não estão servindo ao seu propósito.
As palavras dos sacramentos
Tudo isso importa profundamente para a compreensão católica dos sacramentos. O poder operativo da graça é transmitido pelo ministro, cujas palavras efetuam o que significam. Não celebramos a Eucaristia dizendo: “Tomai todos e comei, isso é um sinal do meu corpo”. Não!
O sacerdote reza as palavras das Escrituras: "Tomai todos e comei, isso é o meu Corpo que será entregue por vós". Estas palavras tornam presente a realidade de Cristo. Ao recitar a fórmula, o sacerdote transforma o pão no Corpo de Cristo.
Mas as palavras por si só não bastam. É por isso que a abordagem filosófica de Pieper é tão rica. As palavras estão se comunicando com alguém.
No caso dos sacramentos, o ministro atua no contexto da Igreja. O diálogo é dela, confiado a ela por Cristo.
As palavras do batismo
As palavras e os sacramentos foram destaques recentemente devido ao caso de um padre que, por mais de 20 anos, não usou as palavras da Igreja para realizar batismos nos Estados Unidos e no Brasil.
Sobre isso, alguém comentou nas redes sociais: “A crise do batismo da Igreja Católica é fabricada. A fé é maior que a gramática. Amém."
Outra pessoa escreveu que pensar cuidadosamente sobre as fórmulas dos sacramentos é como “tratar as palavras tradicionais do batismo como uma senha de computador”.
Mas, como Pieper nos ajudou a ver, as palavras importam porque a realidade é uma coisa. E as palavras transmitem ideias aos outros.
Humildade diante das palavras
Quer gostemos ou não das palavras dos sacramentos, elas exigem que nos submetamos humildemente diante da realidade e diante da Igreja. Podemos ter nossas próprias ideias e preferências, mas, no fim, elas só farão sentido se nos agarrarmos a elas com mais vigor do que à linguagem da comunhão dos crentes.
O mundo sofrerá porque a inteligibilidade do Evangelho sofrerá com nossa falta de clareza. E nós mesmos sofreremos, distorcendo nossas mentes para estarmos mais distantes daquilo que é e daqueles a quem somos chamados a amar.
Sim, Deus é mais poderoso do que nossas ideias e palavras. Sim, Ele é mais misericordioso também. Mas nenhum desses princípios considera suficientemente o poder – ou o abuso – da linguagem.