A Colômbia recentemente descriminalizou o aborto até a 24ª semana de gestação. Para se ter uma ideia, com os avanços da medicina atual, bebês prematuros que nascem com essa idade já têm chance de sobreviver. Mas, por mais que isso nos escandalize e faça sofrer, o fato é que legislações pró-aborto avançam na América Latina e no mundo.
São João Paulo II, na Evangelium vitae (EV), consagrou a expressão “cultura da morte”, referindo-se tanto ao aborto quanto à eutanásia. A adesão a legislações pró-aborto marcam justamente uma transformação cultural de profundas consequências nos países de tradição cristã. Os movimentos pró-vida se notabilizaram sobretudo pela rejeição a essas legislações, mas – se queremos construir realmente uma “cultura da vida e do amor”, como exortava São João Paulo II (EV 100-101) – somos chamados a um trabalho cultural mais amplo, à refundação de uma cultura da solidariedade e da acolhida.
O descarte a morte
O aborto e a eutanásia são sintomas de uma situação cultural muito mais ampla. Quando apenas enfrentamos as legislações contrárias à vida, fazemos um trabalho louvável, mas não enfrentamos adequadamente o desafio cultural de nossas sociedades. Muitos imaginam que o problema é apenas ideológico, como se uma confrontação de ideias ou o combate a uma certa doutrinação resolvesse a questão. Infelizmente, trata-se de uma situação muito mais ampla e complexa. As opções culturais não se afirmam apenas por estratagemas ideológicos, mas sim por uma série de práticas cotidianas que vão moldando as mentalidades.
Papa Francisco cunhou uma outra expressão que, no fundo, refere-se à mesma realidade que a referida na “cultura da morte”, mas talvez mais contextualizada aos tempos atuais: “cultura do descarte” (ver Fratelli tutti, FT 18ss, e para sua aplicação à questão do aborto, em especial, ver seu discurso aos ginecologistas católicos). A cultura da morte é aquela que descarta os seres humanos que não parecem interessantes a quem tem o poder. A cultura do descarte leva à morte daqueles que não parecem interessantes a quem tem o poder. Trata-se do mesmo desafio recebendo nomes diferentes em função do momento histórico diferente.
São João Paulo II considerava que é necessário “chegar ao coração do drama vivido pelo homem contemporâneo: o eclipse do sentido de Deus e do homem, típico de um contexto social e cultural dominado pelo secularismo [...] Quem se deixa contagiar por esta atmosfera, entra facilmente na voragem de um terrível círculo vicioso: perdendo o sentido de Deus, tende-se a perder também o sentido do homem, da sua dignidade e da sua vida; por sua vez, a sistemática violação da lei moral, especialmente na grave matéria do respeito da vida humana e da sua dignidade, produz uma espécie de ofuscamento progressivo da capacidade de enxergar a presença vivificante e salvífica de Deus” (EV 21).
O drama dos corações vazios
Esse “eclipse do sentido de Deus e do homem” ofusca a própria percepção do amar e do ser amado, da empatia e da percepção da dignidade do outro. Nunca se falou tanto quanto agora em amor, empatia, solidariedade, dignidade – mas nem por isso somos mais amorosos, solidários ou sábios. Na prática, o individualismo, o consumismo e a busca do sucesso a qualquer preço contaminam nossas relações com os outros e com as coisas. Se, no século XX, havia uma certa ilusão de que os descartados e os assassinados eram vítimas apenas de poderes autoritários e despóticos, hoje é claro que essas pessoas são vítimas também do comodismo, do egoísmo e do consumismo que preenche nosso coração quando falta um sentido maior para a vida.
Nas palavras dramática do Papa Francisco “quando as pessoas se tornam autorreferenciadas e se isolam na própria consciência, aumentam a sua voracidade: quanto mais vazio está o coração da pessoa, tanto mais necessita de objetos para comprar, possuir e consumir. Em tal contexto, parece não ser possível, para uma pessoa, aceitar que a realidade lhe assinale limites; neste horizonte, não existe sequer um verdadeiro bem comum. Se este é o tipo de sujeito que tende a predominar numa sociedade, as normas serão respeitadas apenas na medida em que não contradigam as necessidades próprias [...] A obsessão por um estilo de vida consumista, sobretudo quando poucos têm possibilidades de o manter, só poderá provocar violência e destruição recíproca” (Laudato si’, LS 204).
Esse tipo de mentalidade se difunde não tanto a partir de doutrinações ideológicas, como normalmente pensamos, mas na repetição de pequenos gestos pelos quais os jovens aprendem que o sucesso é a coisa mais importante da vida, que não se pode confiar no amor, que não há nada melhor do que o prazer. Muitas vezes esses gestos acontecem por uma inversão: sofrer com um gesto autoritário leva à descrença na autoridade familiar, ver pessoas incoerentes leva a uma desconfiança nos valores que professam, ver ou sofrer traições e descasos leva a desacreditar no amor. Todas essas coisas, mesmo que aparentemente distantes do aborto e da eutanásia, colaboram para o crescimento de uma cultura da morte e do descarte.
Superar a cultura da morte e do descarte com a cultura da vida e do amor
Bento XVI, respondendo a uma pergunta sobre as legislações pró-aborto, considerou que lhe parecia que “na base destas legislações haja por um lado um certo egoísmo e por outro uma dúvida sobre o futuro. E a Igreja responde sobretudo a estas dúvidas: a vida é bela, não é algo duvidoso, mas é um dom e também em condições difíceis a vida permanece sempre um dom. Portanto voltar a criar esta consciência da beleza do dom da vida. E depois, outra coisa, a dúvida do futuro: naturalmente há tantas ameaças no mundo, mas a fé dá-nos a certeza de que Deus é sempre mais forte e permanece presente na história e portanto podemos, com confiança, também dar a vida a novos seres humanos. Com a consciência de que a fé nos dá sobre a beleza da vida e sobre a presença providente de Deus no nosso futuro podemos resistir a estes medos que estão na base destas legislações”.
Esse é o grande caminho a trilhar para se reconstruir uma cultura da vida e do amor. Mas, para isso, o Papa Francisco aponta que é fundamental “cuidar da fragilidade, da fragilidade dos povos e das pessoas. Cuidar da fragilidade quer dizer força e ternura, luta e fecundidade, no meio dum modelo funcionalista e individualista que conduz inexoravelmente à cultura do descarte [...] significa assumir o presente na sua situação mais marginal e angustiante e ser capaz de ungi-lo de dignidade” (FT 188).
A maioria de nós se encontrará poucas vezes diante de uma situação de aborto ou eutanásia e só em algumas ocasiões terá que assinar plebiscitos ou consultas populares sobre o tema. Mas todos nós, todos os dias de nossas vidas, temos ocasião para testemunhar a beleza da vida, a força real do amor e a esperança que vem da fé.