Uma declaração, no mínimo infeliz, de Lula trouxe de volta o tema do aborto para o debate eleitoral. Os textos do Magistério são bastante claros a esse respeito: “a consciência cristã bem formada não permite a ninguém favorecer, com o próprio voto, a atuação de um programa político ou de uma só lei, onde os conteúdos fundamentais da fé e da moral sejam subvertidos com a apresentação de propostas alternativas ou contrárias aos mesmos” (CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Nota doutrinal sobre algumas questões relativas à participação e comportamento dos católicos na vida política. Roma, 2002). Nesse mesmo documento, a defesa da vida, condenando o aborto e a eutanásia, são considerados como “princípios irrenunciáveis”. Daí o famoso lema “católico não vota em abortista”, simples e prático, que deveria funcionar como uma espécie de “divisor de águas” moral a orientar nosso voto. Contudo, muitos católicos se sentem incomodados com sua aplicação automática e sem questionamentos. Esse texto é voltado justamente a esses que se sentem incomodados e procura explicar alguns dos problemas mais comumente percebidos.
A insegurança se deve a dois fatores. Muitos políticos, sem grande compromisso com o bem comum, até mesmo corruptos e mal-intencionados, perceberam que condenar publicamente o aborto lhes garantia votos cristãos (mesmo que sua atuação, no conjunto, ficasse bem distante da construção do bem comum). Sabendo disso, muitos católicos bem formados hesitam em dar seu voto a esses candidatos. Por outro lado, a forte propaganda pró-aborto muitas vezes consegue ocultar o fato de que o embrião já é uma pessoa humana. Assim, candidatos bem-intencionados, mas ideologicamente contaminados, tomam posições pró-aborto – e como todo processo de convencimento não é exclusivamente racional, expor argumentos é importante, mas não basta para mudar a posição dessas pessoas bem-intencionadas, mas ideologicamente contaminadas.
Os princípios irrenunciáveis não são só um
Essa dificuldade em relação aos políticos se deve, em grande parte, a uma visão reduzida que nós mesmos temos dos princípios irrenunciáveis. A própria Nota doutrinal acima citada, elenca vários “princípios irrenunciáveis. Considera, por exemplo, a defesa e promoção da família; a liberdade de educação; a tutela social dos menores e a libertação das vítimas das modernas formas de escravidão; a liberdade religiosa; o progresso para uma economia que esteja ao serviço da pessoa e do bem comum; a paz, que “exige a recusa radical e absoluta da violência”.
Dentro de uma visão integral, na qual todos esses princípios sejam considerados (não apenas em termos abstratos, mas em suas implicações concretas em termos de políticas públicas), se evidencia quando a condenação do aborto é apenas uma posição demagógica de um político. Ao mesmo tempo, surgem vários canais de comunicação e testemunho, que ajudam na difícil (mas necessária) tarefa de mostrar para certas pessoas, bem-intencionadas moralmente, mas ideologicamente enganadas, o valor da vida do nascituro.
Nesse aspecto, um sério obstáculo a uma posição católica coerente é a tendência a um falso “realismo político”, que nos leva a não criticar certas posições dos políticos porque, na prática, renunciamos a alguns princípios em nome de outros. Assim, uns renunciam à defesa da vida porque acreditam que candidatos pró-aborto estão mais comprometidos com uma economia voltada à pessoa humana, enquanto outros renunciam a uma economia voltada ao bem comum para garantir votos contrários ao aborto. Mas o sentido dos princípios irrenunciáveis é justamente a negação desse falso “realismo político”, que abandona certos princípios em nome de uma lógica partidária. O católico bem formado cobra de seus candidatos o compromisso não com um princípio ou outro, mas com TODOS eles – mesmo quando isso pode levar a um aparente enfraquecimento partidário.
A primazia do direito à vida
Ainda que existam vários princípios irrenunciáveis, o direito à vida tem evidentemente um lugar preponderante. Em primeiro lugar, nenhum dos demais princípios poderão ser aplicado se a pessoa não estiver viva. Além disso, tem um significado cultural: a primazia da vida se identifica com a primazia da pessoa, em oposição ao economicismo, ao coletivismo e ao individualismo, ao utilitarismo e à “cultura do descarte”.
Sua força, contudo, deve-se também a outros fatores, mais práticos e menos conceituais. A condenação do aborto tem uma carga afetiva inegável. Um dos aspectos mais cruéis daquilo que São João Paulo II chamou de “cultura da morte” é justamente a verdadeira amputação da humanidade das pessoas, ao fazer com que elas não percebam a vida que pulsa na criança por nascer. Mas, para aqueles que ainda não foram submetidos a essa operação ideológica, é inegável a carga afetiva e existencial associada à defesa da vida.
Por fim, não podemos negar que a condenação do aborto é um critério político muito simples e fácil de entender. Um princípio como a economia a serviço do bem comum depende, para sua aplicação, de uma série de considerações de caráter econômico. Por exemplo, até que ponto o mercado é um território determinado apenas pela busca do lucro e até onde é uma condição para garantir a liberdade pessoal e a construção mais efetiva do vem comum? Mesmo quando pensamos especificamente na defesa da vida, até que ponto as estratégias contra a pandemia de Covid-19 eram realmente indispensáveis e até onde eram fruto de uma certa visão ideológica de sociedade? São questões polêmicas, difíceis de se tornarem critérios evidentes, enquanto a condenação do aborto é objetiva e fácil de entender.
A questão partidária
A Igreja não toma posições partidárias. O Compêndio da Doutrina Social da Igreja lembra que “as instâncias da fé cristã dificilmente são assimiláveis a uma única posição política: pretender que um partido ou uma corrente política correspondam completamente às exigências da fé e da vida cristã gera equívocos perigosos. O cristão não pode encontrar um partido que corresponda plenamente às exigências éticas que nascem da fé e da pertença à Igreja” (CDSI 573). A opção partidária de cada cristão é pessoal, respeitando-se os “limites dos partidos e posições não incompatíveis com a fé e os valores cristãos” (CDSI 574).
No Brasil, nenhum partido foi tão explícito na defesa do aborto quanto o PT. Mas, nesse sentido, ele serve para mostrar o quanto uma militância sincera e comprometida faz a diferença. O partido continua majoritariamente pró-aborto, porém foi obrigado a abrandar seus posicionamentos particularmente após a segunda campanha de Dilma Rousseff para a presidência, quando percebeu que poderia perder muitos votos católicos se permanecesse em sua posição original. Assim, um católico simpatizante do PT é particularmente convidado a se comprometer com a defesa da vida e se tornar um instrumento de transformação dentro do partido, sem nunca deixar de denunciar seus erros e maus-feitos em função de uma conivência política.
Os que não desejam votar no PT também não estão isentos de uma responsabilidade nessa situação. Espera-se deles uma atenção redobrada com outros aspectos da construção do bem comum, para evitar que políticos mal-intencionados se aproveitem dos princípios irrenunciáveis para serem eleitos e depois não se comprometerem com o bem comum. Também eles podem trair os ideais de uma sociedade melhor em função de uma conivência política.
Uma decisão pessoal
O voto é uma decisão pessoal. Espera-se que tomemos essa decisão à luz de um discernimento cristão e nos ajudando mutuamente. Nas palavras da Gaudium et Spes, “embora as soluções propostas por uma e outra parte, mesmo independentemente da sua intenção, sejam por muitos facilmente vinculadas à mensagem evangélica, devem, no entanto, lembrar-se de que a ninguém é permitido, em tais casos, invocar exclusivamente a favor da própria opinião a autoridade da Igreja. Mas procurem sempre esclarecer-se mutuamente, num diálogo sincero, salvaguardando a caridade recíproca e atendendo, antes de mais, ao bem comum” (GS 43).
Que o critério da defesa da vida seja um princípio de discernimento útil para todos nós e que ajude na construção de um Brasil melhor, na próxima eleição e em todas as demais.