Recentemente, por conta da intenção do ator Alain Delon de praticar o suicídio assistido, fui entrevistado por uma jornalista – que se apresentou como não sendo católica e, portanto, precisando de uma boa explicação das razões pelas quais a Igreja não admite nem a ele, nem à eutanásia. Em nossa conversa, ela me disse que havia um ponto em comum na minha explanação e naquela dos que defendiam o direito ao suicídio assistido: tanto eles quanto eu havíamos dito que, em nossa sociedade, as pessoas não sabem morrer.
É natural que não queiramos morrer. O desejo de morrer só pode se dar numa situação psíquica depressiva, num contexto de sofrimento ou terminalidade da vida muito extremados. “Saber morrer”, contudo, é algo muito diferente, significa compreender que a trajetória da própria vida chegou ao fim, que foram feitas as coisas que deveriam ser feitas, que é chegada a hora de voltar ao Pai (ou mesmo a algum tipo de “infinito universal”, nas várias modalidades que se apresenta para pensadores agnósticos, filosofias orientais ou mesmo religiões animistas). Essa é a sabedoria que se encontra cada vez mais perdida em nossa sociedade, levando a maioria a querer prolongar a vida indefinidamente, enquanto uns poucos desejam abreviá-la pela falta de perspectivas e esperança.
O medo da morte e a fé
J.R.R. Tolkien, autor do célebre “O Senhor dos Anéis”, é um dos pensadores católicos mais radicais do século XX. Sua literatura fantástica não tem intenção catequética, mas sua criatividade, marcada pelo catolicismo, é repleta de imagens e referências cristãs. Uma de suas reflexões mais interessantes é justamente sobre a morte.
Em seu mundo de fantasia, existem elfos, sábios e poderosos, que só morrem se forem assassinados, e seres humanos, mais limitados e destinados a morrer. A morte, contudo, é apresentada como um dom surpreendente: por meio dela, os seres humanos serão capazes de se encontrar o Criador, de uma forma que está vedada aos elfos. Nesse mundo, porém, não é possível saber como será tal encontro, que permanece cercado de mistério. O Tentador, o Grande Inimigo de todas as criaturas, se aproveita desse desconhecimento, instilando o medo da morte entre os seres humanos e induzindo-os a praticar o mal. Temos medo da morte porque não sabemos o que é esse porvir, tememos que ele seja esse “nada” que a tudo devora e esvazia, onde tudo o que é bom desaparece.
Olivier Clément, grande autor católico ortodoxo francês, em sua biografia espiritual (“L'autre soleil”, infelizmente sem tradução para o português), conta que, quando era pequeno, perguntou ao pai, um ateu convicto, o que era a morte. “A morte é o nada, mas é preciso ser bom assim mesmo”, foi a resposta. Clément conta que, apesar de sua pequena idade, percebeu que algo estava errado na resposta. Se a morte é o nada, o que é esse “nada”? O que ele tem a ver com a bondade? A criança não percebia que, se a morte é o nada, devemos aproveitar ao máximo esse tempo da vida, sem limites éticos. Diante do nada da morte, qualquer compromisso moral corre o risco de parecer mais uma justificativa para nossa capacidade limitada de alcançar a felicidade do que um real caminho para chegar a ela.
A primeira missão de toda religião é, justamente, nos libertar do medo da morte. A fé nos dá esperança e nos liberta para os sacrifícios necessários ao bem comum, à busca da verdade e a uma concepção não individualista do que é a felicidade. Uma justa intuição da eternidade ilumina a todas as religiões, mesmo àquelas que instrumentalizam a fé e a boa vontade de seus crentes.
Contudo, especificamente em nossos tempos atuais, outros fatores dificultam uma visão adequada da morte e a inteligência do “saber morrer”.
A morte na sociedade da eterna insatisfação
Em nenhum outro tempo e lugar os seres humanos tiveram tanto quanto nas cidades modernas. A pobreza castiga duramente grande parte das populações urbanas, mas – no conjunto – disfrutamos de muito conforto e qualidade de vida. O progresso material humano, em si mesmo, é algo bom e só podemos desejar que seus benefícios sejam estendidos a todos os seres humanos. Ele traz, porém, várias dificuldades no trato com a morte.
Não estamos acostumados a sofrer. Desconfortos e dores que, antigamente, faziam parte do cotidiano, não acontecem mais. Isso é bom, mas assim como devemos treinar nosso corpo para praticar o esporte que desejamos, também precisamos de uma certa prática para saber como nos comportarmos diante das dificuldades. Não tendo mais esse “treinamento”, criamos uma aversão ao sofrimento que não nos permite ter a tranquilidade e o discernimento necessários para enfrentar os momentos dolorosos. Ao invés de convivermos com a morte e procurarmos a atitude mais sábia diante do inevitável, procuramos esquecer dela, afastá-la de nossa visão e de nosso imaginário. Deixamos os moribundos morrerem sozinhos em hospitais moderníssimos, mas nos quais muitas vezes falta o calor humano dos entes queridos. Não damos a nós mesmos o espaço para trabalhar o luto, indispensável para nossa própria sanidade mental.
Além disso, somos uma sociedade estruturalmente insatisfeita. Queremos sempre ter mais, obter mais sucesso, ganhar maior reconhecimento. Vivemos na sociedade da “eterna insatisfação”. Se nunca estamos satisfeitos, nunca estamos prontos para a morte. Sempre nos parecerá que ainda falta alguma coisa por fazer, um prazer pelo qual viver. O olhar pacificado para com a própria vida se torna cada vez mais improvável, assim como a sabedoria diante da morte.
O Cântico de Simeão
Um dos maiores tesouros do catolicismo, frequentemente esquecida em nosso tempo, é a chamada Liturgia das Horas, a “oração oficial da Igreja”, que deveria ser rezada nos diferentes momentos do dia. Todas as noites, antes de dormir, nas chamadas Completas, ela nos convida a rezar o Cântico de Simeão (Lc 2, 29-32), uma verdadeira lição de como viver e como morrer numa perspectiva cristã.
O velho sábio se declara pronto para morrer porque “seus olhos viram a salvação”. É a experiência de uma vida plenificada pelo encontro com Cristo que o torna pronto para a morte. “Luz para iluminar as nações, glória de teu povo Israel”, completa. Diante da eminência da morte, à luz do encontro real com a pessoa de Cristo, Simeão não se fecha em si mesmo, mas abre seu olhar para contemplar o mundo todo e o seu povo, aqueles a quem ama.
A sabedoria diante da morte não nasce de um desencanto com a vida, do medo de sofrer ou de uma visão estoica da eternidade. É a companhia concreta de Cristo, ao longo da vida, a experiência de saber-se amado, com um afeto tão poderoso que consegue vencer toda a dor e todo o sofrimento, que lança esperança e luz para a “grande passagem”. Essa é a sabedoria diante da vida e da morte que nós cristãos, somos convidados a viver com alegria e testemunhar diante do mundo.