A guerra na Ucrânia completa 3 meses neste dia 24 de maio - e, apesar das funestas perspectivas de que ainda se arraste ao longo de meses, a Rússia já perdeu.
Não que haja algum vencedor. Em qualquer guerra, todos os envolvidos direta e indiretamente perdem muito mais do que ganham. A própria entrada numa guerra já é essencialmente uma derrota, porque a única forma genuína de vencer um conflito armado é impedi-lo de começar.
A Rússia perdeu
A Rússia, no entanto, é o maior dos perdedores desta guerra que o seu próprio regime autoritário provocou e que ele próprio se nega pateticamente a chamar de guerra - talvez na tentativa inútil de narrar para o próprio subconsciente que não irá perder, já que, na sua realidade paralela, o que está havendo nem sequer é uma guerra.
Vladimir Putin também se esforça para manter um igualmente patético discurso de vencedor, mas nem ele mesmo acredita no próprio devaneio.
OTAN | Um dos seus objetivos prioritários era impedir a expansão da OTAN junto às suas fronteiras. Putin não apenas não conseguiu garantir que a Ucrânia desista de solicitar ingresso na aliança militar ocidental, como ainda viu a Finlândia, que tem mais de mil quilômetros de fronteira com o norte da Rússia, formalizar um pedido de adesão que nem sequer estava sendo considerado concretamente antes da agressão do Kremlin contra os vizinhos ucranianos. Por fim, a historicamente neutra Suécia também formalizou o mesmo pedido e pelo mesmo motivo.
ZELENSKY | Outro dos objetivos prioritários de Putin era derrubar o governo de Volodymyr Zelensky, a quem tacha de nazista a despeito de ser judeu, para implantar em seu lugar um governo-fantoche pró-Moscou. Putin não apenas fracassou retumbantemente neste objetivo como ainda provocou o resultado oposto: Zelensky cresceu em popularidade na Ucrânia e passou a ser exaltado como herói por grande parte do planeta, relegando a segundo ou terceiro plano as denúncias contra as suas políticas na região de Donbass.
RESISTÊNCIA MILITAR | Além de não conseguirem derrubar o governo da Ucrânia, as tropas invasoras tardaram muito mais do que previam para chegar à capital do país, surpreendidas pela resistência das forças locais. Quando enfim chegaram, acabaram escorraçados tanto de Kiev quanto da segunda maior cidade da Ucrânia, Kharkiv. Em ambas, aliás, a vida cotidiana tem retomado rotinas mais próximas da normalidade do que da guerra, seja em termos de serviços públicos, seja no tocante à vida fora dos abrigos subterrâneos - apesar, é claro, da grave destruição causada a centenas de edifícios e infraestruturas, sem falar nas perdas irrecuperáveis de vidas inocentes. Não custa repetir: ninguém ganha uma guerra; na menos pior das possibilidades, uma das partes perde um pouco menos.
DESERÇÕES | E não foi só a resistência ucraniana que surpreendeu os invasores. Parte das próprias tropas russas se rendeu voluntariamente aos ucranianos já nos primeiros dias da invasão: grupos de jovens soldados russos, obrigados a lutar uma guerra que não é deles, ficaram estarrecidos com a selvageria que o seu país estava promovendo contra os vizinhos e sabotaram os próprios equipamentos para evitar ser cúmplices da loucura de Vladimir Putin.
PROTESTOS DOMÉSTICOS | Mesmo dentro da Rússia, e apesar da repressão intensificada, cidadãos se atreveram a protestar publicamente contra a guerra e contra Putin, assumindo o risco de ser presos - e, de fato, encarando a prisão aos milhares por semana.
SANÇÕES | As sanções internacionais, que Putin tem se empenhado em menosprezar, tendem a ser sentidas crescentemente pela população russa à medida que passem os meses e o país se veja cada vez mais isolado política e comercialmente. Dezenas de grandes empresas ocidentais deixaram o país, que também foi excluído do sistema financeiro internacional.
PETRÓLEO E GÁS | Se o rublo parece ter-se recuperado momentaneamente, em grande parte é porque o governo obrigou os importadores do seu petróleo a pagarem nessa moeda - mas o cenário tende a ficar bem menos favorável à economia da Rússia à medida que a União Europeia implementar os seus supostos planos (por enquanto tão genéricos quanto hipócritas) de substituir a dependência de combustíveis fósseis pela adoção de fontes energéticas renováveis.
Caberia aqui um artigo à parte sobre o porquê de os governos europeus não terem feito isso muito antes, em vez de priorizarem invectivas populistas em favor da responsabilidade ambiental alheia. Essa mesma hipocrisia, registre-se, deve ser declarada hoje como cúmplice da guerra na Ucrânia, já que, no mínimo, torna (muito) mais lenta a capacidade europeia de prescindir do gás e do petróleo que, além de incompatíveis com os seus inverossímeis discursos verdes, são culpavelmente adquiridos, sem maiores pudores, de um regime que já era criminoso muito antes de dizimar, por exemplo, a cidade inteira de Mariupol.
Como quer que seja, ainda que motivados pela falta de opções e não pela virtude que pregam ao próximo embora não a pratiquem, os hipócritas governos europeus tendem a ser, gradualmente, clientes bem menos rentáveis para a Rússia das próximas décadas. É mais uma das derrotas que Vladimir Putin já legou ao seu povo.
RISCO DE FRAGMENTAÇÃO TERRITORIAL | Não faltam analistas, até, que predizem a fragmentação da Rússia em vários novos países, já que, espalhados pelo território gigantesco e nada homogêneo do mais vasto país do planeta, pululam movimentos separatistas longamente ávidos pela oportunidade de dar adeus ao controle de Moscou.
UCRÂNIA AINDA MAIS VOLTADA AO OCIDENTE | Por sua vez, a Ucrânia tende a acelerar a obtenção de vantagens junto ao Ocidente, mas o preço que paga por essa perspectiva é o atual martírio das milhares de vidas perdidas, dos mais de 6 milhões de refugiados fora de suas fronteiras e de um avassalador desastre econômico do qual precisará de muito tempo e de várias centenas de bilhões de dólares em ajuda externa para se recuperar.
A Ucrânia também perde
De fato, assim como podemos afirmar que a Rússia perdeu esta guerra, podemos igualmente declarar que a Ucrânia passa longe de poder considerar-se "vencedora".
Segundo dados do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), 6.552.971 pessoas deixaram a Ucrânia desde o início da guerra. A mesma agência da ONU registrou 2.048.500 de entradas no país, mas não sabe confirmar se o número se refere à população que já retornou à Ucrânia.
Também segundo a ONU, pelo menos 3.309 civis ucranianos morreram comprovadamente em decorrência da guerra, mas o número deve ser muito maior: diversas áreas do leste do país continuam sitiadas e sem acesso possível para seus funcionários poderem fazer um levantamento completo.
Por mais que, no médio a longo prazo, a Ucrânia saia desta guerra mais fortalecida e com melhores perspectivas do que a Rússia, uma guerra é uma guerra: ninguém vence; pode, no máximo, ter uma derrota menor do que a outra parte.
O Papa e a guerra
O Papa Francisco se posicionou energicamente contra a guerra desde várias semanas antes da sua eclosão, e, após o início dos ataques, agiu em diversas frentes para promover o seu fim.
Ele se ofereceu pessoalmente como mediador entre Moscou e Kiev, chegou a ir presencialmente à embaixada russa junto ao Vaticano, conversou com autoridades civis e religiosas dos dois países, enviou importantes autoridades vaticanas à Ucrânia e mandou diversas ajudas materiais à população, entre dinheiro, comida, remédios, artigos de higiene e até duas ambulâncias, por meio de estruturas da Igreja como a Cáritas, a fundação Ajuda à Igreja que Sofre e centenas de paróquias, conventos e mosteiros, que abriram as portas para acolher desabrigados.
Entre as muitas declarações firmes do Papa Francisco contra a guerra, destacamos as que ele proferiu em duas ocasiões:
1 - “Não é operação militar especial: é guerra!”
No Ângelus de 6 de março, I Domingo da Quaresma, o Papa afirmou sem panos quentes que a guerra da Rússia contra a Ucrânia não é uma "operação militar especial", refutando frontalmente a estapafúrdia narrativa de Putin, mas sim uma guerra de fato, com todo o horror que uma guerra significa para a população:
2 - "Qualquer guerra é uma derrota para todos"
No Ângelus de 27 de março, Francisco qualificou a guerra como "cruel e insensata" e afirmou que é preciso "apagá-la da história humana antes que ela apague o homem da história":