O funcionamento e a dotação de verbas públicas para as comunidades terapêuticas está entre as tantas polêmicas que marcam a transição do governo Bolsonaro para o governo Lula. O tema interessa diretamente os cristãos e todo o chamado Terceiro Setor, pois implica tanto numa visão das relações entre a fé e as obras (cf. Tg 2, 14-26), quanto entre Estado e empreendedorismo social.
No site do governo federal essas comunidades terapêuticas vêm definidas como “entidades privadas, sem fins lucrativos, que realizam gratuitamente o acolhimento de pessoas com transtornos decorrentes do uso, abuso ou dependência de substâncias psicoativas, em regime residencial transitório e de caráter exclusivamente voluntário (espontâneo)”. Não integram o Sistema Único de Saúde (SUS), mas são considerados equipamentos da rede suplementar de atenção, recuperação e reinserção social de dependentes de substâncias psicoativas. Em sua maioria são mantidos por entidades religiosas cristãs e seu maior questionamento é justamente sobre a capacidade das comunidades religiosas de acompanhar a recuperação e a reinserção social dos dependentes com eficiência e respeito a sua liberdade de crença. A crítica nasce, em grande parte, de um laicismo militante, que imagina uma suposta neutralidade ideológica do Estado (que todos sabemos não existir), que seria obrigatoriamente mais eficiente e menos corrupto que as entidades religiosas.
Um preconceito contra a religião
Os questionamentos às comunidades terapêuticas estão fortemente identificados com um livro, escrito pelo sociólogo Erving Goffman, Manicômios, prisões e conventos (São Paulo: Perspectiva, 2008), originalmente publicado, em 1961, com o título em inglês Asylum – pois referia-se especificamente à análise de um hospital que recebia doentes com transtornos psiquiátricos. Nessa obra, Goffman apresenta os danos causados por instituições que privam a pessoa de sua liberdade, projetando sobre ela valores e comportamentos hegemônicos na sociedade. A associação, que já está no título na edição brasileira, entre manicômios e conventos, bem ilustra o preconceito contra a religião subjacente a essa reflexão.
De fato, comunidades terapêuticas se baseiam na socialização num contexto fechado, onde os dependentes buscam se apoiar mutuamente, frequentemente participando de atividades laborais e religiosas. Muitos dependentes não se adequam a essa dinâmica, mas não se pode negar que ela tem uma efetiva capacidade de ressignificar a vida de pessoas que precisam reencontrar-se diante do mundo. A ajuda mútua e a colaboração das equipes de funcionários, normalmente motivados pela caridade cristã, criam um clima de acolhida e afeto. Os trabalhos, mesmo que simples, ajudam a organizar o tempo e redescobrir a utilidade da própria vida. A experiência religiosa ajuda a reencontrar a esperança necessária para seguir em frente.
O tratamento de dependentes químicos, na atualidade, é visto dentro de uma abordagem multidisciplinar. Não se pode, nas comunidades terapêuticas, dispensar o acompanhamento de profissionais capacitados. Isso não significa negar o valor da experiência religiosa, da oração e da fé no processo de reabilitação, mas também o conhecimento técnico-científico faz parte dos dons de Deus para o bem dos seres humanos. Por outro lado, seria preconceituoso e até contra a liberdade de muitos dependentes privá-los da possibilidade de um acompanhamento espiritual adequado.
Ao longo dos séculos, as obras religiosas algumas vezes pecaram, até de forma dramática, em seus trabalhos de assistência humanitária. Contudo, deve-se considerar que trabalhavam dentro das concepções e dos conhecimentos de seu tempo. Além disso, quase sempre eram o único recurso disponível para as populações de baixa renda – e ainda hoje os pobres frequentemente não encontram um atendimento melhor por parte do Estado. O enfrentamento social do problema da dependência química necessita de diferentes formatos de intervenção, adequados aos diversos usuários, mas cabe ao Estado e aos propositores de outras condutas de tratamento viabilizar esses espaços alternativos. Não se trata de eliminar as comunidades terapêuticas, mas de complementá-las.
O caminho da subsidiariedade
Uma das críticas mais frequentes ao financiamento das comunidades terapêuticas com verbas públicas é que desviaria recursos que o Estado deveria empregar para a criação de sua própria rede de atendimento. A lógica não explicitada nesse argumento é a de que o serviço estatal é obrigatoriamente melhor do que aquele prestado pelo Terceiro Setor, particularmente pelas instituições religiosas. Ora, basta um olhar para a ampla rede de saúde mantida pelo SUS, onde entidades religiosas e organizações sociais se somam à rede pública estatal para constatar que esse pressuposto não se sustenta. Existem serviços de excelência tanto públicos quanto privados, assim como existem serviços lamentáveis tanto públicos quanto privados.
Um serviço é público porque atende a todos os cidadãos, independentemente de pessoas ter condições para pagar por ele ou estar vinculado a determinada posição social. O Estado, dentro de suas possibilidades, tem a obrigação de garantir serviços públicos de qualidade para toda a população, mas isso pode ser conseguido tanto com uma rede própria quanto com uma rede de parceiros. O que não pode acontecer é esses parceiros administrarem esses serviços com vistas ao lucro e não ao atendimento à população, ou serviços reconhecidamente ineficientes serem contemplados com recursos aos quais não deveriam ter acesso. Na verdade, a existência de várias entidades sociais prestando serviços de qualidade à população aumenta a possibilidade de escolha dos cidadãos, além de permitir o desenvolvimento de soluções inovadoras para muitos problemas.
A doutrina social da Igreja proclama o princípio da subsidiariedade, que defende justamente a necessidade do Estado subsidiar as iniciativas com as quais os cidadãos procuram resolver seus problemas e atender suas necessidades. O trabalho que nasce por amor ao bem comum, a partir do empreendedorismo e da dedicação das pessoas tende a ser muito mais eficiente do que o realizado de forma burocrática, em instituições despersonalizadas, onde se atua por obrigação, segundo um esquema de funcionamento imposto de cima para baixo.
Eficientes e transparentes
Evidentemente nem tudo será maravilhoso nas comunidades terapêuticas. Haverá aquelas exemplares, que atendem bem os usuários, com altas taxas de recuperação e inserção social, e as pouco eficientes e problemáticas, que devem ser reestruturadas ou mesmo fechadas. Uma das funções do Estado, consoante com o princípio da subsidiariedade, é justamente acompanhar e fiscalizar essas entidades, garantindo um uso eficiente dos recursos públicos.
Esse acompanhamento, contudo, não pode ser confiado apenas ao Estado, pois isso faria com que essas comunidades se tornassem presas da ideologia e dos interesses do partido no governo. A fiscalização precisa ser realizada por organismos tripartites, com representantes do governo, das próprias comunidades terapêuticas e de seus usuários. Mesmo que com defeitos, esse modelo tripartite é aquele que se mostra o mais estável e eficiente em todas as situações nos quais foi adotado.
Já as comunidades devem buscar sempre o acompanhamento de profissionais qualificados, procurando melhorar seu atendimento, mantendo-se fiéis ao seu carisma original, mas conscientes que o verdadeiro bem-estar e promoção humana dos usuários é o mais importante. Além disso, devem se mostrar transparentes para a sociedade, tanto em termos dos métodos utilizados quanto do uso dos recursos recebidos. Quanto mais uma entidade se vê questionada, mais importante é se mostrar transparente e pronta a corrigir eventuais erros.
Esse é o caminho para que as obras dos cristãos possam ser cada vez mais reconhecidas e colaborarem efetivamente para o bem comum.