Em duas ocasiões, numa meditação matutina e numa audiência, Papa Francisco causou um certo escândalo ao dizer que muitos casais em nossos dias preferem ter animais de estimação a ter filhos. Enquanto alguns se regozijavam com as afirmações do Pontífice, outros se sentiram indignados pelo que seria a censura a uma afetividade sincera que sentiam para com seus bichinhos. Antes de continuar, é importante esclarecermos alguns pontos:
1. O Papa não condenou ter animais de estimação. O Catecismo inclusive diz que “pode-se amar os animais” desde que “não se dê a eles um afeto que só é devido às pessoas” (CIC 2418).
2. Nessas ocasiões, Francisco estava desejando, isso sim, incentivar a paternidade e a maternidade, bem como a adoção de crianças órfãs. Em suas palavras: “Penso, em particular, em todos aqueles que se abrem a acolher a vida através da adoção, que é uma atitude tão generosa e positiva [...] Este tipo de escolha está entre as formas mais elevadas de amor e de paternidade e maternidade. Quantas crianças no mundo estão à espera de alguém que cuide delas! E quantos cônjuges desejam ser pais e mães, mas não o conseguem por razões biológicas; ou, embora já tenham filhos, querem partilhar o afeto familiar com quantos não o têm. Não devemos ter medo de escolher o caminho da adoção, de assumir o ‘risco’ do acolhimento” (Catequese sobre São José 6).
3. As críticas do Pontífice estavam direcionadas àqueles que optam por animais de estimação porque têm medo de que, com os filhos, percam conforto, bem-estar e autonomia. Além disso, advertia que “este matrimônio acaba por chegar à velhice na solidão, com a amargura da solidão” (Meditação sobre os três amores para um matrimônio).
Quando os pets valem mais que as pessoas
Recentemente, uma pesquisa nos Estados Unidos mostrou que os jovens que tinham animais de estimação se alegravam mais com a “felicidade” de seus animais de estimação (36% dos entrevistados) do que com a felicidade de seus companheiros (21%). Estamos, portanto, numa situação ainda mais extremada do que aquela em que se trocam filhos por animais: esses jovens preferem os animais a seus namorados, namoradas, esposos e esposas.
A cada geração, estamos ganhando mais “liberdade” para vivermos nossos afetos. Mas, com isso, as relações afetivas parecem estar se tornando cada vez menos satisfatórias, ao invés de mais prazerosas. Nos aproximamos cada vez mais do realismo desesperançado exposto por Jean-Paul Sartre, em seu clássico Entre quatro paredes (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira): “o inferno são os outros”. A companhia dos outros pode nos trazer afeto e satisfação, mas também pode ser uma fonte de angústia e conflito, vigilância e pressão.
Ter um animal de estimação, cuidar dele, pode ser uma grande ajuda para o desenvolvimento afetivo de uma pessoa. Crianças, jovens e adultos, na relação com seus pets, aprendem a se responsabilizar pelo bem de outros, fazem experiências positivas de carinho e afeto, descobrem a alegria de ser importantes para um outro. Por outro lado, os animais não nos oferecem os riscos que enfrentamos na relação com outra pessoa: eles não nos criticam diretamente, não verbalizam racionalmente suas insatisfações, não nos trocam por outro dono “mais legal”, não nos decepcionam e frustram quando chegam à idade adulta nem correspondem a nossas expectativas. Parecem dar tanto quanto outra pessoa poderia dar, mas cobram muito menos por isso e parecem ser muito mais confiáveis.
Animais de estimação não são tão “livres” quanto os seres humanos – e constatamos, todos os dias, o quanto a liberdade, nossa e dos outros, pode ser causa de desgostos e frustrações. Mas, existe um algo mais que só podemos receber de um outro que seja tão livre quanto nós. Infelizmente, nas relações afetivas, muitas pessoas aprenderam a fazer com os outros o que bem entendem, mas não aprenderam a dar esse “algo mais”. Daí que os pets se apresentem como menos arriscados e até mais satisfatórios que os humanos.
Viver um verdadeiro grande amor
Escandalizar-se com a situação atual não adianta muito. Temos, inclusive, que reconhecer que, se os jovens sentem cada vez mais que é melhor a companhia de um animal de estimação do que a de uma outra pessoa, a culpa é dos adultos que não pensavam assim, mas não souberam apresentar uma experiência de vida que “valesse a pena”, que fosse realmente gratificante.
Nos acostumamos com a ideia de que a vida “é assim mesmo”, feita de “altos e baixos”. Reduzimos o fascínio à banalidade; trocamos o desejo, que nos apaixona, mas também nos fere, pelo conformismo, que pouco dá, mas em compensação não machuca; preferimos não “rir todos os nossos risos” em troca de não “chorar todos nossos choros”. Nossos prazeres se tornaram individualistas, pois estando sozinhos fazemos o que bem entendemos – e isso parece ser a liberdade e a felicidade. Para viver assim, um jovem talvez possa mesmo preferir ser fiel a um pet que a um outro ser humano, cuidar de cães e gatos a cuidar de crianças.
A questão não é, portanto, criticar quem prefere pets a pessoas; mas sim mostrar todo o fascínio das relações interpessoais. A liberdade não é só fazer aquilo que se quer. Liberdade é poder escolher e fazer aquilo que mais nos realiza. A satisfação de receber afeto não é suficiente para nos deixar felizes: precisamos dar afeto – e dar afeto para alguém que seja tão livre como nós, que até mesmo nos incomode e nos obrigue a fazer algo aparentemente contra a nossa vontade.
Um cristianismo bem vivido é uma abertura natural para a verdadeira liberdade e a verdadeira felicidade. Nele, os afetos se integram de modo equilibrado, existe espaço para o outro e para os filhos, para o casal e para os amigos, para as crianças e para os pets, pois em tudo se expressa aquele amor primeiro que recebemos de Deus, que se comunica ao mundo por nosso intermédio e que nos mostra a verdadeira realização e a verdadeira liberdade que se expressam na doação ao outro.