Nos últimos meses, em muitos países, as comunidades católicas têm se abalado com a notícia de que um dos mais importantes artistas sacros europeus da atualidade está sendo condenado por abusos contra mulheres. Infelizmente, casos assim se tornaram comuns nesses tempos de #Me Too. O cinema e a televisão estão repletos de casos semelhantes. Mas não deixa de ser chocante, para os católicos, que um artista que embelezou tantos espaços sagrados tenha incorrido nesses mesmos erros...
Está em curso um debate sobre a necessidade de retirar suas obras dos espaços sagrados, até como gesto simbólico de expiação pelos pecados cometidos. Trata-se de uma opção controversa. De um lado, as obras não têm nada a ver com os erros do autor; não é que ele teve que pecar para poder fazê-las. De outro, tanto as vítimas quanto a sociedade precisam de sinais claros de que a impunidade não triunfou. As futuras gerações precisam saber que aqueles gestos não podem ser aceitos. O próprio perdão não pode ser adequadamente aplicado onde reina a impunidade.
Não quero aqui atacar ou defender o artista. O julgamento, particularmente aquele que resulta em condenação, deveria sempre ser um ato doloroso para nós, um gesto a ser feito apenas quando necessário. Contudo, as discussões sobre o caso suscitaram a pergunta do título: os maus podem servir a Deus? Uma obra bela e boa pode surgir de um coração mau? Deus escreve certo por linhas tortas, diz a sabedoria popular, mas ficamos chocados e desconcertados quando nos deparamos com uma situação assim.
Quando as coisas boas nascem de pessoas más
A história está repleta de exemplos, algumas vezes até tétricos, de obras de arte que nasceram de pessoas más. "Na Itália, por 30 anos, sob os Bórgias, tiveram guerra, terror, homicídio, sangue e produziram Michelangelo, Leonardo da Vinci e o Renascimento. Na Suíça, tiveram amor fraterno, 500 anos de democracia e paz e o que produziram...? O relógio-cuco”. A frase, de Orson Welles, consta de O terceiro homem, filme baseado no romance do escritor Graham Greene. Ainda que exagerada e até injusta, reflete uma constatação que podemos fazer ao longo dos tempos. Frequentemente grandes obras nascem das pessoas moralmente menos indicadas.
Muitos artistas têm suas vidas marcadas pelos vícios, pela violência doméstica e até por assassinatos. Nem por isso suas obras deixam de ser belas, inclusive com uma beleza que nos comove e nos aproxima de Deus. Às vezes, temos até a impressão de que o aguilhão do mal espicaça a alma, levando-a a compreender ainda mais o resplendor do bem. Isso não os absolve das maldades praticadas – nem deveria ser um estímulo para que outros façam males iguais.
Mesmo entre pregadores, gurus e sacerdotes, das mais diversas religiões, encontramos aqueles que cometem atos maus. Algumas vezes, sua própria pregação é má, não no sentido de proporem gestos maus, mas no sentido de quererem instrumentalizar a fé e o espírito religioso dos fiéis em proveito próprio. Mas, mesmo nesse caso, o que vale não é a intenção de quem fala, mas a fé de quem ouve. Quantas pessoas não encontraram a fé por meio da pregação e dos discursos de gente nem um pouco confiável! Quando encontramos casos assim, costumamos nos enraivecer pela falsidade do pregador, mas talvez devêssemos mais nos envergonhar por Deus ter precisado recorrer a ele, por não ter encontrado entre os bons alguém capaz de chegar ao coração de nossos irmãos...
Um tempo de juízos difíceis
Vivemos um tempo no qual a arte mostra uma beleza duvidosa, que mais retrata a dor e a revolta humanas que o esplendor da Verdade, onde falsos mestres proclamam a raiva e exploram o ressentimento, onde tudo vira mercadoria a ser consumida indistintamente. Trata-se, sem dúvida, de um tempo perigoso para falarmos de coisas boas, vindas de pessoas más – ainda que também seja um tempo complicado em que coisas más podem vir de pessoas boas...
Como discernir a quem seguir e o que admirar, a quem evitar e o que renegar? Em primeiro, temos que ter em mente que a Verdade, o Bem e a Beleza (com maiúsculas no início, isso é, que vêm de Deus) sempre apontam para o amor, a misericórdia e a solidariedade. O que nos leva à raiva, à violência e à divisão não vêm de Deus. mesmo que tenhamos que condenar os erros, essa condenação – quando iluminada por Deus – é cheia de tristeza e de esperança pela realização do bem. Em segundo lugar, o verdadeiro aponta para Deus e seu amor, para o desejo de bem dos irmãos, enquanto o falso aponta para os ídolos do mundo ou até para nós mesmos. Gurus que geram um seguimento irrefletido, artistas que apontam para si mesmos ou para uma visão narcisista do mundo, não são sinais de Deus – mesmo quando falam e se valem das coisas de Deus.
A oração sincera e o seguimento humilde à Igreja universal (não a esse ou àquele profeta de plantão) serão sempre caminhos seguros. Poderemos errar muitas vezes, mas – no final – a bondade e o amor de Deus sempre nos guiarão pelo rumo certo.