Quando estudamos a história das religiões, percebemos que houve um acidentado caminho de tentativas de autotranscendência na compreensão que as sociedades tiveram de si e do mundo.
Fustel de Coulanges, em “A sociedade Antiga”, mostra que a religião não era uma espécie de “valor agregado” às antigas civilizações, mas a argamassa que as unia. Traça um itinerário que vai desde os deuses familiares até os panteões criados pelas antigas civilizações. Acerca da relação entre “religião e moral” ele escreve:
“É natural que a ideia moral tenha tido seu começo e tenha progredido como a ideia religiosa. O Deus das primeiras gerações, nessa raça, era bem mesquinho; pouco a pouco os homens tornaram-no maior; assim a moral, a princípio muito restrita e incompleta, alargou-se insensivelmente, até que, de progresso em progresso, chegou a proclamar o dever do amor para com todos os homens. Seu ponto de partida foi a família, e foi sob a ação das crenças da religião doméstica que os deveres começaram a aparecer aos olhos do homem” (São Paulo, Editora das Américas: 1961, p. 67).
Também Mircea Eliade mostra que a relação entre religião e moral é muito precária no paganismo antigo:
“Seria um erro acreditar que o homem religioso das sociedades primitivas e arcaicas recusa-se a assumir a responsabilidade de uma existência autêntica. Pelo contrário, ele assume corajosamente enormes responsabilidades: por exemplo, a de colaborar na criação do Cosmos, criar seu próprio mundo, ou assegurar a vida das plantas e dos animais etc. Mas trata se de um tipo de responsabilidade diferente daquelas que, a nossos olhos, parecem ser as únicas autênticas e válidas. Trata-se de uma responsabilidade no plano cósmico, diferente das responsabilidades de ordem moral, social ou histórica, as únicas conhecidas pelas civilizações modernas. Na perspectiva da existência profana, o homem só reconhece responsabilidade para consigo mesmo e para com a sociedade. Para ele, o Universo não constitui um Cosmos, ou seja, uma unidade viva e articulada; é simplesmente a soma das reservas materiais e de energias físicas do planeta. E a grande preocupação do homem moderno é a de não esgotar inabilmente os recursos econômicos do globo. Mas, existencialmente, o primitivo situa se sempre num contexto cósmico. À sua experiência pessoal não falta nem autenticidade nem profundidade, mas, pelo fato de se exprimir numa linguagem que não nos é familiar, ela parece inautêntica ou infantil aos olhos dos modernos” (“O Sagrado e o Profano”, São Paulo: Martins Fontes, 1992, pp. 49-50).
Em outras palavras, as sociedades antigas eram sociedades mágicas. A experiência religiosa se dava através de uma noção fantástica da ação dos deuses. Os deuses não eram propriamente bons ou maus. Eram uma reprodução da imagem do homem, que tem seus interesses pragmáticos em busca da satisfação de suas necessidades básicas.
A concepção de um “deus bom” é muito tardia na história das religiões. Alguns a atribuem a uma espécie de migração do misticismo do extremo oriente, via o espiritualismo budista, reelaborado na religião persa e sistematizado na filosofia grega. Há quem hipotize uma influência causal do zoroastrismo persa sobre a religião judaica no período pós-exílico, supondo que a “monolatria” foi introduzida pela classe sacerdotal, juntamente com o culto sacrifical monopolizado por ela, com a execução de uma intensa produção literária que começava a apresentar a ideia de bondade como característica de Yahweh.
Alguns apresentam hipóteses e conjecturas como fatos consumados, mas, como afirma Alan Segal, “a influência iraniana em Israel continua sendo um verdadeiro mistério. Quando os documentos religiosos iranianos foram publicados pela primeira vez no Ocidente, no século XIX e início do século XX, começou uma onda de interesse por tudo o que fosse zoroastriano (da grafia grega, ‘Zoroastro’, de sua figura principal, Zarathushtra), não apenas porque eram expressões exóticas e novas de sabedoria, embora isso certamente fizesse parte da atratividade, mas porque as imagens iranianas e especialmente seu dualismo religioso pareciam espelhar muitas coisas sobre o pensamento judeu e cristão nos primeiros séculos de nossa era. Depois de um período de reivindicações extravagantes e intenso e polêmico escrutínio, a maioria hostil, o mundo acadêmico não admitiu quase nada do zoroastrismo como uma influência na tradição judaica nativa” (“Life after death: a history of the afterlife in western religion”, New York, Doubleday: 2004, p. 175, tradução minha).
Em todo caso, a relação entre moral e religião é decorrente do monoteísmo, o qual entendeu a bondade de Deus e, portanto, percebeu que a origem do mal não está num princípio que lhe seja perfeitamente antagônico, mas que, em todos os casos, está subordinado a ele.
Não é sem razão que percebemos nas Escrituras reverberações disso. Satã, no livro de Jó, aparece como um “anjo” a serviço de Deus. No judaísmo tardio, essa concepção de satanás como acólito de Deus permaneceu, sendo fortemente refutada pela Igreja, nos seus primeiros séculos.
No Novo Testamento, a figura do diabo aparece sobretudo como a de um “tentador”, aquele que se atira no meio (diabo, vem de “dia” e “boulos”, literalmente, no grego, aquele que se atravessa pelo meio) para desviar o homem do seu fim (a noção de pecado como “hamartia”, que no grego remete a errar o alvo, tem grandes afinidades com isso). E o Filho de Deus se encarna, para “destruir as obras do diabo” (1Jo 3,8).
Ao invés de rejeitar a lei, o Novo Testamento, a despeito da crítica moderna liberal, reforça a necessidade de uma conduta moral elevada, que leve o homem a uma radical mudança de pensamento (“metanóia” significa literalmente isso) provida de frutos de boas ações.
Desgraçadamente, os reformadores lançaram uma grande confusão quando trataram do caráter salvífico da lei. Para Lutero, como a salvação se dá apenas pela fé e é forânea, ou seja, uma imputação exterior que não modifica a natureza, tudo que o homem faz é mau e, portanto, incapaz de ser atinente à salvação. A doutrina católica sempre sustentou que o homem não pode se salvar, que depende radicalmente da graça de Cristo; mas que a graça opera uma verdadeira regeneração que transforma o homem em colaborador do Senhor em seu processo de transformação, de tal modo que as suas boas obras podem ser deiformes, ou seja, podem ser feitas a partir de uma verdadeira união com Deus e ter um verdadeiro valor sobrenatural.
Calvino agravou ainda mais a situação, pois, com a doutrina da corrupção total, que permanece mesmo após a justificação, o homem só pode ser salvo por uma eleição divina que independe da sua própria escolha pessoal. Neste sentido, a imagem de Deus, na teologia calvinista, se parece muito mais com as divindades antigas, que são totalmente soberanas, não vinculadas à sua própria bondade, e que podem decidir livremente o que quiserem, independentemente da bondade ou malícia do homem. Para Calvino, porém, a bondade moral de alguém seria sinal de sua predestinação, pois a perseverança dos santos seria fruto de uma graça irresistível.
Sendo assim, temos como que uma relação diferente entre moral e religião no contexto católico e protestante: para o protestante, o homem faz o bem porque Deus mandou na sua Palavra (legalismo moral), o que difere do judaísmo (legalismo cúltico), que entende que a observância cerimonial da lei é salvífica; para o catolicismo, o homem deve fazer o bem porque o bem é bom em si mesmo, e isso é racionalmente rastreável e útil para a salvação, desde que ele esteja em estado de graça e realizando obras sobrenaturalmente virtuosas.
Neste sentido, uma moral elevada faz toda a diferença. E, quando lemos o Novo Testamento, percebemos como o chamado a uma vida moral correta é apresentada como condição para o progresso na espiritualidade: nos sinóticos, especialmente em Mateus, vemos como a lei moral é condição para ser um homem justo (não é atoa que o Sermão da Montanha começa pelo comentário à lei para, somente depois, partir para o comentário sobre a oração); nos escritos joaninos, vemos a mesma exigência de luta contra o pecado, a tal ponto que o narrador afirma que quem peca é do diabo; nas cartas paulinas, isso é definitivamente salientado na luta entre a carne e o espírito, as obras da carne e o fruto do Espírito.
Quando a crítica histórica avançou em seu intento de desconstruir e desmistificar a Sagrada Escritura, sem discernir a Divina Revelação por detrás de todas as contingências históricas ocorridas na composição dos textos, acabou por criar um problema de difícil solução. Como Hasel explica em sua “Introdução ao Antigo Testamento”, houve um momento em que as “ciências bíblicas” se independentizaram da dogmática e passaram a utilizar métodos tão somente historiográficos, renunciando à fé (como se o texto mesmo não tivesse sido escrito a partir da fé).
Ora, reduzindo tudo à mitologia, estava esvaziada a dogmática e, portanto, todas as exigências morais passaram a ser percebidas como meras formas de controle social da religião sobre o comportamento individual das pessoas. Como a solução pietista consistiu em transformar a piedade no fundamento da fé (na versão católica, isso significou tomar a sério tão somente as construções dogmáticas dos Concílios), o fortalecimento dogmático tomado como pura abstração eclesial começou a conviver com uma abertura moral cada vez mais libertária, uma vez que o todo da Revelação era interpretado como condicionado às circunstâncias históricas sociopolíticas.
Portanto, a imagem de Deus oriunda dessas especulações cria uma verdadeira ruptura entre dogma e moral. Alguém pode tranquilamente rezar o Credo apostólico e proclamar-se a favor do aborto, do concubinato, do sexo livre etc. O hiato entre moral e dogma, acaba, por fim, recriando a própria imagem de Deus, aos moldes da nova espiritualidade decorrente disso (um “deus amor” que acaba, por fim, sendo apenas uma reprodução das deusas de procriação da antiguidade, por exemplo).
Em outras palavras, essa cisão produziu uma verdadeira fenda que, ao fim e ao cabo, funciona apenas como meio de reconduzir o cristianismo a uma mera versão do paganismo antigo: o Cristo Deus é esvaziado no Jesus Homem cuja reconstrução indiciária é mais fictícia do que qualquer outra coisa, visto que os rudimentos para tal projeto são tão esfarelados que não podem produzir nada que seja coerente; esse núcleo duro revolucionário em que sucumbiu a identidade de Cristo na nova teologia se presta a todo tipo de instrumentalizações.
Deste modo, o cenário resumidamente por ser descrito nesses termos:
1. Paganismo antigo – panteão de deuses sem conexão moral
2. Judaísmo pós-exílico – monolatria rumo ao monoteísmo (Deus justo) com conexão moral
3. Cristianismo – monoteísmo trinitário (Deus amor) com conexão moral mais elevada ainda
4. Situação atual do cristianismo pós-moderno – monoteísmo trinitário dogmático, sem conexão moral para além das agendas sociais da revolução do momento.
Como se vê claramente, trata-se de uma redução do cristianismo à estrutura do paganismo antigo (relação entre os nn. 1 e 4), em que Deus se reduz a expressões humanas, com algumas pinceladas de Divina Revelação.
Tudo isso tem duas consequências terríveis.
A primeira é a inevitável falsificação de Deus. Um Deus que não se importa com o bem ou o mal, que é indiferente à justiça ou injustiça praticada pelos seus filhos, que trata o santo e o ímpio do mesmo modo, é injusto, não tem razão de ser. Esse tipo de abordagem ética conduzirá inevitavelmente ao ateísmo.
A segunda é o enclausuramento espiritual do homem. O processo de santificação é um progressivo caminho de espiritualização, em que o homem vai deixando o atolamento no mundo dos sentidos e vai entrando na liberdade do espírito. Nada disso pode acontecer sem o refreamento das paixões e a submissão destas à ordem da razão iluminada pela fé. Desconectar a dogmática da moral nada mais é que tornar a própria dogmática apenas um conjunto de fórmulas teóricas, a partir das quais o homem jamais poderá experimentar a intimidade da vida da graça.
É exatamente esse isolamento teologal, que faz da teologia uma ciência de tipo racionalista, espiritualmente marginalizada, o que permite que alguns cheguem a aberrações desse tipo, como a paganização do cristianismo pelo cancelamento da moral. Talvez não haja modo mais claro de expressar aquilo que São Paulo chama de “apostasia” (2Ts 2,3) e que Jesus chama de “anomia” (Mt 24,12), ou seja, rejeição da lei moral.
Pe. José Eduardo Oliveira, via Facebook