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A bailarina e a educação pelo exemplo

Ballerina Farm e sua família
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Matheus Bazzo - publicado em 03/09/23
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O que leva uma mulher casada e mãe de sete crianças a obter grandes conquistas e manter uma vida normal em família?

Uma mãe de sete filhos ganhou o concurso de Mrs. América. O nome dela é Hannah Neeleman, porém ela é mais conhecida pelo título de seu perfil nas redes sociais: Ballerina Farm. Esse título revela outra faceta de Hannah, que, há alguns anos, largou sua carreira como bailarina profissional em Nova Iorque e, junto com seu marido, foi morar em uma fazenda em Utah para construir uma nova vida e fazer disso o negócio de sua família. Antes, o casal havia morado quatro anos no Brasil, onde fizeram missões e aprenderam um bocado de nossa língua. Documentando sua vida nas redes sociais, eles atingiram mais de seis milhões de seguidores e fizeram de sua vida simples um grande negócio de sucesso. 

Nessa breve descrição da vida de Hannah, quase entramos em vertigem pela quantidade de façanhas admiráveis. Esposa, mãe de uma família numerosa, bailarina profissional, empresária, comunicadora, influenciadora e agora Mrs. America. O que leva uma mulher casada e mãe de sete crianças a obter tamanhas conquistas e manter uma vida normal em família? Diante de realizações como essa, nossa postura não deve ser a de desconfiança e crítica invejosa — como é comum na sociedade brasileira —, mas de questionamento a respeito das razões que motivam um ser humano a atingir tamanho resultado.

Em um artigo anterior, eu citei o livro “O Feijão e o Sonho”, no qual Orígenes Lessa apresenta uma contradição que habita no coração de todos os brasileiros. O escritor nos apresenta o personagem Campos Lara como um poeta que é incapaz de realizar uma obra grandiosa, pois não suporta a manutenção das suas responsabilidades sociais e compromisso de estado. A vida burocrática e os boletos a pagar são tarefas inconciliáveis com a realização de uma grande obra. Incapaz de realizar seu sonho, o indivíduo joga a culpa de sua frustração nas limitações do seu meio, na precariedade de seus recursos, nas responsabilidades profissionais. Ou seja, há no imaginário nacional uma restrição que nos impede de articular criativamente os compromissos familiares, profissionais e estatais com a realização de uma vocação grandiosa.

Dessa restrição imaginativa, surge uma legião de demônios — que, ao se depararem com uma personalidade luminosa, escondem-se na falsidade de suas sombras, onde ficam resmungando e inventando críticas para justificar sua própria mediocridade. A verdade é que Hannah Neeleman é capaz de suas realizações porque já viu exemplos de pessoas grandiosas em sua vida. Sua imaginação, inspirada por outros modelos de vida vocacionada, permite que ela crie situações onde é possível realizar sua própria vocação. 

É esse tipo de inspiração que deveria despertar em nós, especialmente entre os católicos, ao nos depararmos com a vida de santidade. Os santos elevados aos altares deveriam despertar em nós a possibilidade de grandes realizações dentro de nossa vida corrente. Outra afetação presente no espírito nacional é a crença de que, para obter resultados extraordinários, é necessário uma vida fora do normal. Ou é preciso muito dinheiro, ou muita fama, ou muita influência, etc. Vivemos presos entre duas ilusões: ou vivemos a languidão depressiva, onde não sabemos articular o feijão e o sonho, ou vivemos uma ilusão lunática, onde é necessário quebrar com todas as normas para obter algum destaque na vida. 

A solução dessas ilusões contraditórias está na diferença que Dietrich von Hildebrand estabelece entre vida comum e vida normal. Em seu livro “Liturgia e Personalidade”, o filósofo explica que a vida comum é aquela do homem resignado aos seus compromissos correntes, mas que não realiza grandes obras — é a vida descrita por Orígenes Lessa. Já a vida normal é aquela que vive por um grande ideal, mesmo em seus compromissos correntes — sem a necessidade do destaque social e da fama. A vida normal (ou a vida vocacionada) é aquela que define a normalidade e a proporcionalidade das coisas. A vida vocacionada não é uma vida comum, mas também não é uma vida anormal. 

Hildebrand explica que personalidades como Goethe e Napoleão são reconhecidas pelo seu talento, mas não necessariamente pela qualidade de suas vidas. O talento é um dom acidental que pode ser lapidado e aprimorado, mas que não é um fator determinante na realização de uma vocação. O que determina a vocação é a capacidade de agir de acordo com a finalidade — as causas — de cada elemento da vida humana.  A fidelidade às causas da vida humana pode acarretar no desenvolvimento de talentos extraordinários, mas não é seu determinante. Uma vida normal é aquela que segue a norma real das coisas, sem a necessidade de grandes arroubos de fama e reconhecimento. Ela também não fica resignada somente aos compromissos menores, mas sabe integrar esses compromissos na trama maior da finalidade última da vida humana.

É por isso que a presença de exemplos de vida vocacionada na normalidade dos nossos dias é tão importante. Voltando para o exemplo de Hannah: sendo criada imersa na cultura americana, certamente não faltaram a ela exemplos de heroísmo e virtude na história de seu país, nos filmes, nos livros, etc. A literatura de lá, especialmente a popular e as dime novels, é de forte tom moralizante — em parte pela influência da religiosidade protestante, como aponta Vianna Moog em seu livro “Bandeirantes e Pioneiros”. Essa tendência pode suscitar exageros moralistas em alguns casos, mas a verdade é que, no quadro geral da produção cultural americana, a propaganda moralizante inspirou a produção de inúmeras obras de alto valor. 

Além disso, não só na cultura popular de seu país que a bailarina pode encontrar inspiração para sua vida. Através das redes sociais, podemos acompanhar em sua família a luta heróica que seu pai está travando contra o câncer. Mesmo tendo uma de suas pernas amputadas durante o tratamento, ele segue trabalhando e vivendo com seus familiares com disposição e alegria. Talvez aí já esteja um exemplo de vida vocacionada sem necessariamente o destaque dos holofotes e das capas de revista. 

Falar de normalidade e de educação para a virtude no Brasil pode parecer coisa de louco. Nosso sistema educacional e nossa cultura estão tão submersos em ideários progressistas  que a velha concepção de educação pelo exemplo de virtude vai parecer algo arcaico — desde quando ser velho é ser ruim? — e desprezível para muitos ouvidos. Mas a cada novo modelo de educação criado, surgem novas falhas e buracos no sistema. Mais do que a técnica educacional, o que educa uma pessoa é a personalidade madura e a sabedoria acumulada de outras pessoas, especialmente pais e professores.

A matéria da educação é a vida humana. Sua especulação e seus desdobramentos são o norte de toda boa educação. Conhecer a natureza humana, suas potências e fraquezas, suas finalidades últimas e seus vícios deve ser o centro de todo esforço educacional. As  técnicas pedagógicas são apenas meios para se atingir esse fim: formar uma vida humana em sua máxima plenitude.

Portanto, o instrumento mais importante — na verdade, o pilar fundacional — da educação é a vida pessoal e íntima dos educadores, sejam eles pais, familiares ou professores. São as escolhas individuais, a erudição, a integridade moral, a piedade, o sacrifício e a virtude pessoal que alicerçam o desenvolvimento dos nossos confiados. O contato contínuo de uma criança com um exemplo de virtude é onde começa e termina todo desenvolvimento pessoal. Até mesmo a grande literatura universal, o mais alto pico de erudição humana, é apenas um instrumento para se conhecer a natureza do homem. Conhecimento esse que poderia ser suplantado em grande medida pela presença de exemplos de vida vocacionada, ou de vida normal, como Dietrich von Hildebrand explica.

O esforço para sermos, em nossa vida pessoal, como essas pessoas normais, os heróis, os honrados, os realizadores, os santos, é uma maneira de oferecer acesso à literatura universal e despertar o imaginário até mesmo daqueles que não sabem ler. A educação do próximo começa na minha vida interior. Suspeito que seja uma visão semelhante a essa que levou Hannah Neeleman a realizar o que realizou. Ao receber sua coroa de Mrs. America, a bailarina foi questionada a respeito dos momentos em que se sentiu mais empoderada. Sua resposta confirma minha suspeita: “Já senti esse sentimento sete vezes até agora ao trazer essas almas sagradas para a Terra, depois de segurar um bebê recém-nascido em meus braços. O sentimento de maternidade e de trazê-los à Terra é o sentimento mais poderoso que já senti”. 

Matheus Bazzo é fundador da Lumine e da Minha Biblioteca Católica

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