No último artigo sobre Laudate Deum (LD), refletimos sobre como é pertinente que a Igreja se dedique ao tema do aquecimento global, como parte de sua tarefa de evangelização. Muitos, contudo, ainda criticam o Papa Francisco por acreditar que ele se preocupa excessivamente com os temas sociais e políticos, dando pouco espaço para a reflexão religiosa.
Nada mais falso! Particularmente no tema ecológico, percebemos que Francisco, desde a Laudato si’ (LS) encontrou nos temas ecológicos uma possibilidade abençoada de falar sobre Deus e seu amor para as novas gerações, sedentas de sentido e amor para suas vidas. O entusiasmo despertado pela atenção do Papa à ecologia não vem só da importância objetiva do tema, mas da percepção, muitas vezes explicitada até por agnósticos e pessoas de outras religiões, de que o Papa fala de uma ternura, de um amor, que trazem beleza e sentido para os temas ecológicos.
O discurso ecológico de Francisco não é uma estratégia comunicativa, que aborda uma questão para “vender” outra, é a expressão natural de sua vida interior. Isso torna ainda mais verdadeiro e sincero seu discurso – mais cativante para um mundo que carece de Amor e Verdade, mesmo quando não reconhece.
Superar o paradigma tecnocrático
Aprofundando sua reflexão ecológica, Francisco mostra que a degradação ambiental em geral, e o aquecimento global, em especial, estão diretamente ligados ao mau uso do poder econômico e tecnológico, por aqueles que procuram o lucro de forma desenfreada, sem limites, sem respeito pelo bem comum e pela natureza. Francisco adverte que se trata de um problema ético, decisões pessoais a serem tomadas na gestão dos empreendimentos, no uso dos recursos e do poder, grande ou pequeno, que cada um tem em suas mãos.
E aqui o Papa reforça um ponto nem sempre adequadamente trabalhado na recepção da Laudato si’. Trata-se do paradigma tecnocrático: “pensar como se a realidade, o bem e a verdade desabrochassem espontaneamente do próprio poder da tecnologia e da economia”, passando-se à “ideia dum crescimento infinito ou ilimitado, que tanto entusiasmou os economistas, os teóricos da finança e da tecnologia” (LD 20). Não se trata, evidentemente, de uma crítica ao uso da tecnologia em si, mas de um modo desmedido de pensar o poder e as ambições pessoais. “Nunca a humanidade teve tanto poder sobre si mesma, e nada garante que o utilizará bem, sobretudo se se considera a maneira como o está a fazer” (LD 23).
“Todos nós devemos repensar a questão do poder humano, do seu significado e dos seus limites. Com efeito, o nosso poder aumentou freneticamente em poucos decênios. Realizamos progressos tecnológicos impressionantes e surpreendentes, sem nos darmos conta, ao mesmo tempo, que nos tornamos altamente perigosos, capazes de pôr em perigo a vida de muitos seres e a nossa própria sobrevivência [...] É preciso lucidez e honestidade para reconhecer a tempo que o nosso poder e o progresso que geramos estão a virar-se contra nós mesmos” (LD 28].
A questão do poder não diz respeito apenas a empresários gananciosos, ideólogos prepotentes ou políticos irresponsáveis. Estamos diante de um fenômeno cultural, uma lógica que incide sobre o modo como cada um de nós vê a realidade e se posiciona. Francisco aprofunda esse tema na Laudato si’ (LS): “um olhar diferente, um pensamento, uma política, um programa educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade que oponham resistência ao avanço do paradigma tecnocrático. Caso contrário, até as melhores iniciativas ecologistas podem acabar bloqueadas na mesma lógica globalizada” (LS 111).
Citando o teólogo Romano Guardini e São João Paulo II, na Laudato si’, Francisco vincula o paradigma tecnocrático ao antropocentrismo desmesurado: “O antropocentrismo moderno acabou, paradoxalmente, por colocar a razão técnica acima da realidade, porque este ser humano já não sente a natureza como norma válida nem como um refúgio vivente. Sem se pôr qualquer hipótese, vê-a, objetivamente, como espaço e matéria onde realizar uma obra em que se imerge completamente, sem se importar com o que possa suceder a ela. Assim debilita-se o valor intrínseco do mundo. Mas, se o ser humano não redescobre o seu verdadeiro lugar, compreende-se mal a si mesmo e acaba por contradizer a sua própria realidade. Não só a terra foi dada por Deus ao homem, que a deve usar respeitando a intenção originária de bem, segundo a qual lhe foi entregue; mas o homem é doado a si mesmo por Deus, devendo por isso respeitar a estrutura natural e moral de que foi dotado” (LS 115).
Com palavras sintéticas e duras, o Papa encerra a Laudate Deum dizendo: “um ser humano que pretenda tomar o lugar de Deus torna-se o pior perigo para si mesmo” (LS 73).
Um caminho de beleza
Mas nem tudo é denúncia e alarme. Aliás, o sucesso da Laudato si’ se deve, em grande parte, na capacidade de Francisco trazer uma palavra de amor e esperança aos temas ecológicos. Sem dúvida, as pessoas honestas hão de reconhecer que o Papa mostrou que, nas questões ambientais, existe uma enorme busca espiritual e, por isso, um espaço privilegiado para se falar de Deus.
Existe um “caminho da beleza”, uma via pulchritudines, no discurso ambiental de Francisco. Uma beleza decorrente do amor e da ternura evocados pelo Papa, quanto fala de Deus e da natureza. “louvai a Deus por todas as suas criaturas: foi este o convite que São Francisco de Assis fez com a sua vida, os seus cânticos e os seus gestos. Retomou assim a proposta dos salmos da Bíblia e reproduziu a sensibilidade de Jesus para com as criaturas de seu Pai: ‘Olhai como crescem os lírios do campo: não trabalham nem fiam! Pois Eu vos digo: Nem Salomão, em toda a sua magnificência, se vestiu como qualquer deles’ (Mt 6, 28-29). ‘Não se vendem cinco pássaros por duas pequeninas moedas? Contudo, nenhum deles passa despercebido diante de Deus’ (Lc 12, 6). Como deixar de admirar esta ternura de Jesus por todos os seres que nos acompanham no nosso caminho?” (LD 1).Citando a Laudato si’, retoma os fundamentos de uma espiritualidade ecológica plena de fascínio: “O conjunto do universo, com as suas múltiplas relações, mostra melhor a riqueza inesgotável de Deus» e, por conseguinte, para ser sábios, precisamos de individuar a variedade das coisas nas suas múltiplas relações (LS 86). Neste caminho de sabedoria, não aparece irrelevante aos nossos olhos o fato de tantas espécies estarem a desaparecer e a crise climática estar a pôr em perigo a vida de tantos seres [...] as criaturas deste mundo já não nos aparecem como uma realidade meramente natural, porque o Ressuscitado as envolve misteriosamente e guia para um destino de plenitude. As próprias flores do campo e as aves que Ele, admirado, contemplou com os seus olhos humanos, agora estão cheias da sua presença luminosa. O universo desenvolve-se em Deus, que o preenche completamente. E, portanto, há um mistério a contemplar numa folha, numa vereda, no orvalho, no rosto do pobre» (LS 100). O mundo canta um Amor infinito; como não cuidar dele?” (LD 63-65)