Com a estreia, nos cinemas, da medíocre sequela de “O Exorcista” de 1973 (com o nome de “O Exorcista: Crente”), pareceu ser a ocasião ideal para falar do filme original. Desde logo, há que saber que estamos ante uma obra-prima genial com a qual Friedkin fez um drama de mestre. Um em que o horror do “mal” é (pres)sentido como contexto até à medula. E isto em resultado: de uma sólida teologia; do facto de ser íntegro e realista em tudo o que patenteia de modo grotesco, horrendo e até blasfemo; da crueza e da tensão crescentes, paralelas ao contacto lento com as personagens principais; enfim, de uma notável e memorável fotografia, música, sons e até frames sublim(inar)es.
Juntamente com os brilhantes cenários (que levaram, segundo o National Film Registry dos EUA, à filmagem da “cena de século”, quando Sydow está nas trevas sob um candeeiro), a empática e neurótica Burstyn, o venerável e teilhardiano Sydow, o aflito e cético Jason Miller, a inocente e padecente Blair e o paternal e condescendente Lee Miller são espantosos. Todos eles criam desempenhos ajustados ao âmbito do difuso mundo entre as possibilidades da ciência e da fé e entre o mensurável e o (in)acreditável.
Não sei onde está o mais difícil de se ver nesta obra: se nas atuações médicas e psicológicas inaptas no lidarem com algo genuíno, mas que se furta ao seu crescente saber (embora parco no seu campo de ação); ou se, então, no sofrimento padecido pela jovem (a qual, tal como ocorre connosco, só é atingível no seu mais íntimo pelo Deus-Amor, que deste fez o Seu Céu) e por todos que a amam de verdade. Mas o cheiro à batalha, mais profunda do que vemos, entre o amor e o desamor não se descola de nós.
Falei, logo de início, numa espécie de contexto de horror. E para a maior parte das pessoas, o terror é o essencial em “O Exorcista”: um filme para mexer com as emoções e os nervos. Mas, do ponto de vista teológico (e não só), isso é apenas o dito contexto. Com efeito, o âmago é a vida humana no seio do amor mais doloroso: o amor da mãe que arrisca tudo para “curar” a sua filha; o amor dos padres que se entregam a uma “ajuda” gratuita e “ego”-desinteressada até aos próprios sacrifícios, numa batalha contra um mal já vencido na Cruz, mas com restos nos nossos “egos” por eles alimentados e vice-versa.
Eis o amor verdadeiro na sua máxima expressão: o cantado por todos nós, mas que, ao mesmo tempo e bem lá no fundinho do nosso ser, esperamos não ter que viver, por mais que dele nos fale a Bíblia (bem como dos ardis daqueles restos que nos querem fazer sentir indignos de ser amados por Deus-Amor, para, assim, buscarmos outros deuses, mais “ao nosso jeito”, que facilmente se encontram no neo-paganismo em que vivemos). Assim, só consigo ver este filme como uma certa apologia indireta a Deus e ao prudente, sério e totalmente empenhado Catolicismo. Posso estar enganado, mas duvido.
Ignoro se, pastoralmente falando, o melhor é explicar, e correr o risco de alimentar curiosidades malsãs – que, depois, são aproveitadas por charlatães oportunistas (fujam de pagamentos: viver e ajudar no amor é gratuito) –, ou silenciar o que é, ou não, um exorcismo. Sei, isso sim, que gostaria de poder dizer que o que é visto em “O Exorcista” é uma farsa. Não posso. E isso devia levar-nos a um esforço em crescermos, quer na interface entre a ciência e a fé, quer espiritualmente no amor – neste caso, seja pela oração e a penitência, seja pelos Sacramentos objetivamente oferecidos pela Igreja.
(EUA; 1973; dirigido por William Friedkin; com Ellen Burstyn, Max von Sydow, Jason Miller, Lee J. Miller, Linda Blair, William O’Malley e Kitty Winn).