Um dos mais bizarros julgamentos da história recente chegou ao fim - ou pelo menos parece ter chegado, se a militância intolerante não recomeçar a sua perseguição "em nome do amor" contra a ré agora reconhecida (finalmente) como inocente.
Aconteceu na Finlândia. Em 24 de janeiro de 2022, começou em Helsinque, a capital do país, o midático julgamento da ex-ministra Päivi Räsänen. Ela estava sendo acusada, basicamente, de "crime de ódio" após publicar versículos da Bíblia que, segundo os acusadores, "provavelmente causariam intolerância, desprezo e ódio aos homossexuais".
Atenção para o advérbio “provavelmente”, que reforça o caráter subjetivo da acusação.
Räsänen, que é mãe de cinco filhos, médica e parlamentar, foi ministra do Interior entre 2011 e 2015. Segundo informações da ADF International, um grupo de defesa jurídica da liberdade religiosa, ela corria o risco de ser condenada a inacreditáveis 2 anos de prisão ou pagamento de multa após ter sido denunciada pelo promotor-geral da Finlândia, em abril de 2020, por, segundo ele, ter “ofendido os homossexuais” ao citar versículos da Carta de São Paulo aos Romanos. A acusação também incluía outras afirmações de Räsänen num panfleto de 2004 e num programa de televisão em 2018. Segundo o promotor-geral, ela teria "incitado à violência" contra as pessoas homossexuais.
Mas, de fato, o que Päivi Räsänen fez?
A deputada, que é luterana, havia questionado autoridades da sua igreja por terem apoiado, em 2019, um evento do assim chamado orgulho LGBT. Em seu questionamento, via rede social, ela indagou como esse patrocínio seria compatível com a Bíblia, acrescentando uma foto da Sagrada Escritura cristã aberta na passagem de Romanos 1, 24-27:
“Por isso, Deus os entregou aos desejos dos seus corações, à imundície, de modo que desonraram entre si os próprios corpos. Trocaram a verdade de Deus pela mentira, e adoraram e serviram à criatura em vez do Criador, que é bendito pelos séculos. Amém! Por isso, Deus os entregou a paixões vergonhosas: as suas mulheres mudaram as relações naturais em relações contra a natureza. Do mesmo modo também os homens, deixando o uso natural da mulher, arderam em desejos uns para com os outros, cometendo homens com homens a torpeza, e recebendo em seus corpos a paga devida ao seu desvario”.
A polícia começou a investigar a ex-ministra já em 2019. A respeito do julgamento, Päivi Räsänen declarou em 2021:
“Aguardo com a mente tranquila os procedimentos do tribunal, confiante de que a Finlândia respeitará a liberdade de expressão e de religião, consagradas nos direitos fundamentais e nas convenções internacionais. Não recuarei das minhas convicções baseadas na Bíblia e estou preparada para defender a liberdade de expressão e de religião em todos os tribunais necessários. Não posso aceitar que dar voz a crenças religiosas possa acarretar prisão. Defenderei o meu direito de confessar a minha fé, de modo que ninguém mais seja privado do seu direito à liberdade de religião e de manifestação”.
"Provavelmente"?
Em janeiro de 2022, Päivi Räsänen compareceu ao Tribunal Distrital de Helsinque ao lado de Juhana Pohjola, bispo luterano que também enfrentava uma acusação criminal. O procurador-geral da Finlândia acusava o religioso e a parlamentar de “agitação étnica”, o que poderia vir a ser considerado “crime de guerra” ou “contra a humanidade” a depender da interpretação que fosse dada ao código penal do país. Para a promotoria, as declarações de Räsänen “provavelmente causariam intolerância, desprezo e ódio aos homossexuais”. De novo: atenção para o advérbio “provavelmente”, com toda a sua subjetividade.
Os dois réus foram recebidos por apoiadores em sua chegada ao tribunal. De acordo com a ADF International, a promotoria reafirmou, no começo do julgamento, que as opiniões de Räsänen e Pohjola eram "discriminatórias". A defesa pediu que o tribunal não impusesse a sua própria interpretação teológica das Escrituras aos 5,5 milhões de cidadãos da Finlândia, criminalizando assim a doutrina cristã tradicional sobre casamento e sexualidade. A defesa sustentou que uma condenação dos acusados equivaleria a criminalizar, de fato, a Bíblia.
"Escandaloso"
O Conselho Luterano Internacional descreveu o processo contra Räsänen e Pohjola como “escandaloso”, acrescentando que "a grande maioria dos cristãos em todas as nações, incluindo católicos e ortodoxos orientais, compartilham essas convicções". E questionou:
"O Procurador-Geral finlandês condenaria todos nós? Além disso, o estado finlandês deve arriscar sanções governamentais de outros Estados com base no abuso dos direitos humanos fundamentais?".
O diretor executivo da ADF International, Paul Coleman, também observou, na ocasião, que uma condenação colocaria em xeque a liberdade de expressão.
Direitos inexistentes impostos, direitos existentes proibidos
De fato, a Europa - e, em alguma medida, a maior parte do assim chamado "mundo ocidental" - vem promovendo uma explícita cavalgada rumo à imposição de supostos direitos humanos que não existem, como seria o aborto livre e sem qualquer necessidade de justificativa, ao mesmo tempo em que sufoca as liberdades de religião, de pensamento, de opinião e de expressão de pessoas que as exercem sem as imporem a ninguém - mas que não comungam da mesma cartilha.
Chama fortemente a atenção, de fato, a virulência com que a procuradoria-geral da Finlândia perseguiu Päivi Räsänen mesmo após o encerramento da primeira investigação a que ela foi submetida e, sobretudo, mesmo após a sua primeira absolvição em 2022.
Obstinação
Em novembro de 2019, a polícia finlandesa já tinha dado o caso por encerrado após um interrogatório de nada menos que 4 horas feito à ex-ministra, liberando-a. Passados apenas três dias, porém, a procuradoria-geral do país abriu uma nova investigação contra ela, agora apelando para o documento intitulado "Homem e Mulher os Criou": o textro trata do casamento e da sexualidade humana a partir da perspectiva luterana e contou com a participação de Räsänen na sua redação, em 2004.
Essa investigação foi concluída pela procuradoria-geral, em 2022, com uma tripla acusação de crimes de ódio alegadamente perpetrados por Räsänen. O procurador-geral pedia que ela fosse condenada a 6 anos de prisão. Em março do mesmo ano, entretanto, ela foi absolvida.
Obstinada, a procuradoria-geral da Finlândia recorreu da decisão. O novo julgamento aconteceu em agosto de 2023, com a sentença proferida neste último 14 de novembro: Päivi Räsänen foi mais uma vez absolvida, enquanto a procuradoria-geral foi condenada ao pagamento das custas legais do bizarro processo.
Aliás, a decisão do Tribunal de Apelações foi unânime. A procuradoria-geral, mesmo assim, ainda pode recorrer ao Supremo Tribunal da Finlândia.
Ódio?
A este ponto e diante de tal histórico, pode ser que, na mente de alguns leitores, surjam duas perguntas entre muitas possíveis. A primeira: será que a procuradoria-geral da Finlândia continuará obstinada em perseguir Päivi Räsänen até a última instância? E a segunda: considerando todo o exposto, será que o suposto "ódio" tão propalado neste caso não flui com abundância exatamente dos acusadores?