Os monges têm uma tradição que convida a ver a Escritura como um organismo vivente, como uma pessoa que fala conosco. É semelhante à experiência que fazemos quando encontramos uma pessoa e perguntamos algo a ela esperando que ela nos responda. Estamos sempre carregando alguma questão no coração que nos é particularmente significativa naquele momento da vida, mesmo sem ter clareza dela. E acontece frequentemente que após lermos um texto bíblico, somos iluminados exatamente sobre aquela questão.
Por que acontece isso? Porque a Bíblia é a Palavra de Deus. É Ele mesmo falando conosco, nos mostrando ou ensinando algo. Essa experiência nos mostra que a Bíblia é um livro especial, único. É um livro “vivo”, que se comunica conosco como uma pessoa viva. Por isso, os antigos padres da Igreja deixaram muitos escritos onde recomendam que devemos ler e meditar as escrituras procurando estabelecer com ela um relacionamento pessoal. Há um texto do Papa São Gregório Magno (±540 - †604 d.C.) onde ele diz que a escritura “cresce” diante dos olhos do leitor à medida que este cresce espiritual e humanamente. Assim, quanto mais nos ligamos à escritura, mais ela nos revela os seus muitos significados. Os antigos hebreus afirmavam que são 70 os níveis de profundidade que se pode atingir ao ler a Bíblia; o que significa também uma profundidade incomensurável.
Para o mundo bíblico, conhecer profundamente uma pessoa acontece apenas quando nos “unimos” a ela tendo o mesmo modo de pensar, as mesmas preocupações, a mesma forma de viver – é assim que nós compreendemos o outro profundamente. Platão dizia que só conhecemos quem nos é semelhante. Por isso, para se conhecer a Cristo é preciso familiarizar-se com ele, convivendo com ele não só no pão e no vinho, mas como toda a tradição antiga brandia, saboreando o prato delicioso da sua palavra viva: Quando encontrei tuas palavras, alimentei-me, elas se tornaram para mim uma delícia e a alegria do coração, o modo como invocar teu nome sobre mim, Senhor Deus dos exércitos, dizia o profeta Jeremias (Jer. 15, 16). Como seria diferente, mais rica, menos turbulenta e menos difícil a nossa vida, se alguém tivesse nos contado que a Bíblia contém toda essa delicia!
O Concílio Vaticano II, de fato, retomou toda a tradição antiga da Igreja, afirmando que cada cristão precisa ler e meditar a Bíblia regularmente; e o melhor seria diariamente. A constituição conciliar Dei Verbum (n. 25) propõe vários meios para a leitura das escrituras. Ao lado de uma leitura individual, é sugerida uma leitura em grupo, sublinhando a necessidade de que seja acompanhada por uma oração que é a nossa resposta a Deus que nos fala através do texto, sob a inspiração do Espírito.
A experiência de que Deus nos fala enquanto lemos e meditamos o texto sagrado – que nos mostra seu caráter de texto inspirado – já era bem conhecida pela tradição judaica. Um texto rabínico antiquíssimo, que se tornou referência fundamental para a tradição monástica durante séculos, diz que a Torá se revela pouco a pouco, como o véu de uma mulher que se desvela, mas logo se vela. A Torá, porém, diz esse antigo texto, age assim apenas para aqueles que já a conheceram de alguma forma e estão desejosos de segui-la (quer dizer que para descobrir o significado da escritura é preciso de algum modo já tê-la experimentado, estar unido a ela mentalmente, e estar disposto a obedecê-la – o que é muito diferente do olhar cheio de dúvidas, e da postura “vamos ver o que diz”).
A tradição rabínica comparava a Torá a uma belíssima jovem, escondida no recôndito do seu palácio, que possui um amor secreto, desconhecido por todos. Por amor a ela, esse apaixonado insiste em voltar sempre à janela… Até que ela abre a porta do quarto apenas por um instante e revela-lhe seu rosto, mas logo o esconde de novo. Quem estiver, por acaso, na companhia do amado não consegue ver nada nem perceber o rosto dela. Só ele que a ama consegue vê-lo, sendo arrastado interiormente na direção dela com o coração, com a alma e com todo o seu ser. O amante compreende então que foi por um gesto de amor que ela se revelou por um momento, inflamada de amor por ele. É assim que a Torá se revela e se esconde inebriada de amor pelo amado, enquanto excita o amor dentro dele.
O texto rabínico explica então, que a palavra da Torá se revela apenas aos seus amantes, e que a Torá sabe que é a sabedoria do coração que impele alguém a frequentar a sua casa. “Vem e vê” esta é a via, o caminho da Torá. Esse texto antigo, explica ainda que no início, quando a Torá quer revelar-se a alguém, oferece-lhe somente um sinal instantâneo, momentâneo, e se ele não o compreender, ela insiste com um tom de voz sutil, mandando-lhe um mensageiro para lhe dizer de ir até ela de modo que ela possa lhe falar novamente. Como está escrito, “quem é simples venha a mim” (quem é, ao contrário, “surdo” a este primeiro sinal, acaba perdendo também o mistério escondido).
Quando o amado volta a ela, ela começa a endereçar-lhe palavras mais claras, atrás, ainda, do véu, educando-o a compreender. Até que, muito lentamente, seja concebida nele e nasça a intuição espiritual contida no texto. Em seguida, através de um véu de luz, a Torá lhe transmitirá as palavras alegóricas (quer dizer, palavras que de acordo com a etimologia de ‘alegoria’ pertencem a um outro mundo, palavras que nos levam ao mundo dos mistérios de Deus). E só então, quando o amado se tornar familiar a ela, ela lhe falará face a face sobre os mistérios escondidos, ensinando-lhe as estradas a percorrer, que ela já carregava no coração para lhe dizer desde o início.
Quem vive essa experiência é chamado pela tradição rabínica de perfeito, mestre ou esposo da Torá, no sentido mais íntimo e estrito; é o patrão da casa para o qual ela abre todos os segredos, não escondendo mais nada. A ele a Torá diz: “Veja agora, quantos mistérios continha esse simples sinal que te fiz ver no primeiro dia, e qual era o seu verdadeiro significado”? E então, ele compreende que não se pode tirar nem acrescentar nada àquelas palavras, e compreende, pela primeira vez, o significado das palavras da Torá, como se elas tivessem vindo para estar “ali” diante dele, para ele.
Tendo no coração tudo isso que dissemos até agora, e como monges e monjas portadores da riqueza da tradição da lectio divina (leitura orante da Bíblia), pedimos ao biblista Luiz da Rosa para fazer uma Introdução Geral à Bíblia dentro dos Encontros Culturais Camaldolenses.
Luiz é criador e responsável pelo site www.abiblia.org e diretor de comunicação do Instituto dos Irmãos Maristas. Estudou teologia em Jerusalém e obteve o mestrado em Exegese Bíblia pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. O Encontro, cujos vídeos estão agora sendo disponibilizados on-line, ocorreu no dia 26 de agosto de 2023 e contou com a presença de 23 pessoas.
Confira nos links abaixo como foi a apresentação do biblista Luiz da Rosa:
Um pouco da história camaldolense
Os camaldolenses pertencem à grande família dos monges beneditinos. Nascem em 1012 a partir da proposta de reforma monástica de São Romualdo que, profundamente inserido nas dinâmicas da igreja do seu tempo, pretendia renovar a dimensão espiritual na igreja, promovendo a vida solitária em eremitérios e a simplificação da vida comunitária nos cenóbios. Por isso, seus discípulos seguem um estilo de vida simples orientado pela liberdade interior, o amor fraterno e a primazia da procura de Deus, ao mesmo tempo em que formam uma ordem contemplativa aberta às exigências da igreja e da sociedade, com as riquezas e as contradições das suas culturas.
O nome da Congregação surge do eremitério e mosteiro de Camaldoli localizado no alto das montanhas do centro da Itália que é dividido em duas unidades ligadas entre si: um mosteiro de vida cenobítica e um eremitério. Sua forma de vida floresceu ao longo dos séculos a partir de uma realidade tripartite chamada triplex bonum (três oportunidades): a vida cenobítica, a vida eremítica e o apostolado. É característica da vida camaldolense o amor pela cultura, o diálogo interreligioso e a hospitalidade.
No Brasil existem dois mosteiros camaldolenses: o Mosteiro da Transfiguração (1988), comunidade masculina, e o Mosteiro da Encarnação (1994), comunidade feminina.
Estão localizados na zona rural do Município de Mogi das Cruzes e, embora sejam dois mosteiros independentes, compartilham do mesmo espírito camaldolense, codividindo frequentemente a liturgia, a lectio divina e as atividades de apostolado. É particularmente cara, aos monges e monjas camaldolenses, a prática da leitura orante da Bíblia (lectio divina) e sua condivisão semanal com hóspedes e visitantes.