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Deus predestinou uns ao céu e outros ao inferno?

mulher contempla o céu
Julia A. Borges - publicado em 26/11/23
“Deus, que te criou sem ti, não te salvará sem ti”, dizia Santo Agostinho

Tomemos como ponto inicial este versículo bíblico: “Deus quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade” (1Tm 2, 4). A partir dessa leitura, fica claro, de antemão, que Deus não criou nenhum ser humano a fim de padecer no inferno. De imediato, a tese calvinista já é refutada, já que é sabido que, com a Reforma Protestante crescera um pensamento que sublinha que há pessoas predestinadas à salvação e ao mesmo tempo outras predestinadas ao inferno. Todavia, a Bíblia revela o fato de que somos o povo escolhido: no Antigo Testamento, Israel era o povo eleito; no Novo Testamento, há o entendimento de que toda a Igreja se torna a raça eleita (1Pedro 2,9).

No entanto, é necessário ter atenção ao termo “predestinação”, já que é possível admitir algumas linhas de interpretação. Em um sentido mais estrito, o conceito é o destino eterno que Deus tem reservado para suas criaturas racionais e, em especial, aos seres humanos. Teríamos de falar aqui, portanto, de uma dupla predestinação: uma ao céu e outra ao inferno. Santo Tomás de Aquino, na Suma Teológica, afirma, que “Deus quer que todos os homens se salvem”, tratar-se aqui de Sua vontade antecedente, e não de Sua vontade consequente: essa distinção não se toma da parte da própria vontade divina, em que não existe antes nem depois, mas da parte das coisas que Ele quer. Por outro lado, o responsável pela própria condenação é sempre o homem, nunca Deus.

O mesmo não se pode dizer, no entanto, da predestinação ao céu, sob o risco de incorrermos no extremo do pelagianismo. A obra da salvação do homem, desde o início até a sua consumação, é de iniciativa divina, pois é Deus “que opera em nós o querer e o fazer” (Fl 2, 13): Ele, “aos que predestinou, também os chamou; e aos que chamou, também os justificou; e aos que justificou, também os glorificou” (Rm 8, 30). Mas a vontade de Deus não dispensa a nossa vontade, a colaboração humana: “Deus, que te criou sem ti, não te salvará sem ti”, dizia Santo Agostinho. Não é verdade, portanto, que nos salvaremos por puro arbítrio divino, não importando o que fizermos ou deixarmos de fazer. 

As certezas, no entanto, que tanto almejamos em diferentes áreas da vida, parecem não suplantar as dúvidas acerca da salvação; inúmeros são os questionamentos e incertezas acerca do verdadeiro e último encontro: é possível, então, que uma pessoa cumpra a vontade de Deus ao longo de toda a vida e, no último instante, consentindo em um pecado mortal, seja condenada ao inferno? Como pensar nisso e não enlouquecer?

Este episódio da biografia de São Francisco de Sales consegue responder de alguma forma:

“Entre fins de 1586 e começos de 1587, quando ainda estudava em Paris, Francisco tomara contato com a tese teológica da predestinação, defendida pelos protestantes (em especial Calvino) e por alguns autores católicos, e muito discutida na universidade. Ao debruçar-se sobre esse problema, começara a duvidar da própria salvação — muito embora, tanto quanto é possível sabê-lo, nunca tenha cometido um único pecado mortal —, e passara uns bons dois meses acossado por uma tentação obsessiva de desespero que lhe ia roendo a paz de espírito e até a saúde física. 

Livrara-se dela num dia em que, ajoelhado diante de uma imagem de Nossa Senhora, fizera a única coisa possível a quem se encontra nessa situação: um ato heroico de abandono e de esperança em Deus. Declarou ao Senhor que estava disposto a amá-lo durante esta vida mesmo que o seu destino fosse a condenação eterna, e abandonou todas as dúvidas acerca da sua salvação na Misericórdia divina.”

Em muitos casos, e por sermos dotados de raciocínio, temos o anseio de entender cada aspecto da vida e da morte, cada situação na terra e no céu. Tentamos buscar respostas de perguntas que muitas vezes não sabemos nem formular, simplesmente a fim de satisfazer a sede pelo domínio; termo latino, por sinal, que revela o domus, o senhor da situação.

Quando se escolhe abandonar em Deus, não expomos a nossa pequenez já obviamente e sabidamente manifesta; mas exteriorizamos a grandeza velada na fé. Temos, é verdade, um destino, bem sintetizado por Santo Agostinho: “o nosso coração não repousa enquanto não encontrar o Senhor”, e ao fazer da vida o caminho a Cristo, as dúvidas começam a dar lugar às certezas e o sentido de tudo passa a ser um só.

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