Os dados estatísticos, goste-se ou não deles, busque-se ou não justificativas, estão aíO Brasil é um país racista? Ou, pior ainda, o povo brasileiro é racista? Como uma outra pergunta que já nos fizemos, se havia cristofobia no Brasil, essa é uma questão difícil. Existem os dados objetivos e existe a sensibilidade das pessoas, existe a dor do discriminado, existe o descaso do preconceituoso, mas também existe a inocência de muitos (inocência que pode representar uma real posição de não discriminação ou apenas uma falta de percepção consciente).
Os dados estatísticos, goste-se ou não deles, busque-se ou não justificativas, estão aí. Os negros ou pardos, segundo a terminologia adotada pelo IBGE, representam 55% da população brasileira (segundo os dados publicados em 2017), mas representam 75,5% das vítimas de homicídio no País, cerca de 65% dos trabalhadores desocupados ou subutilizados, 75% dos brasileiros que vivem na miséria. Mesmo considerando-se o grau de instrução, os negros têm salários em média menor do que os brancos e mais dificuldade de ocupar cargos gerenciais (todos esses dados podem ser visto no estudo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, do IBGE)…
Talvez o leitor ou a leitora já estejam saturados de ler sobre essas coisas. A repercussão dos assassinatos dos negros George Floyd, nos EUA, e João Alberto Silveira Freitas, no Brasil, mais a Semana da Consciência Negra (em novembro), inundou as mídias de textos sobre racismo. Contudo, ainda existem alguns aspectos polêmicos que gostaria de comentar, infelizmente (pois o ideal seria que o racismo não existisse e não precisássemos falar nele).
Racismo estrutural e supremacismo
As pesquisas de opinião pública mostram, repetidamente, que o brasileiro não se considera racista, mas acredita que o racismo existe no Brasil – ou seja, seria um defeito dos outros, mas não dele. Para entendermos isso, os conceitos de racismo estrutural e supremacismo são úteis.
Racismo estrutural é aquele que está presente nas estruturas sociais, não sendo devido à ação consciente de uma pessoa em particular. Desde a abolição da escravatura, a população negra vive na pobreza e tem menos acesso à instrução formal. Hoje em dia, esses são problemas estruturais, que não acontecem porque uma pessoa ou outra é preconceituosa, mas sim porque a estrutura da sociedade, historicamente construída, é injusta. Já o chamado supremacismo é uma ideologia segundo a qual uma pessoa julga que a sua etnia (“raça”) é melhor do que as outras e tem direito a privilégios que as outras não têm. O supremacismo, como postura consciente, é muito raro no Brasil, mas o racismo estrutural domina nossa sociedade. Daí a falsa ideia de uma “democracia racial” no Brasil.
Um aspecto ainda mais complicado é o preconceito subjetivo e inconsciente que afeta grande parte da população. Não queremos ser preconceituosos, racionalmente rechaçamos o preconceito, mas ideias preconceituosas – ouvidas exaustivamente em nossa vida, repetidas em piadas de mal gosto, usadas para ocultar os problemas estruturais da sociedade – acabam moldando nosso inconsciente.
Há muito anos, ouvi um testemunho, de uma professora muito católica e já idosa, que ajuda a entender o que seria uma posição verdadeiramente cristã diante do racismo. Ela, quando jovem, era assistente da Juventude Operária Católica (JOC), em sua cidade no interior de São Paulo. Nos sábados à noite, saia com as amigas operárias, quase todas “de cor”, e era discriminada na cidade, chamada de comunista e censurada por se misturar com pessoas “socialmente inferiores” (para usar os termos mais empregados na época). Ela nunca se arrependeu do que fazia e de suas amizades. Contudo, me confidenciou: “elas eram todas minhas amigas, mas se meu filho chegasse em casa dizendo que iria se casar com uma jovem negra, eu teria dificuldade de aceitar, mesmo não dizendo nada – e procuro combater isso em mim”.
O modo de matar monstros
O escritor argentino Julio Cortazar, no livro Os reis (São Paulo: Civilização Brasileira, 2015), faz com que o Minotauro diga a Teseu: “só existe um modo de matar os monstros, acreditar neles”. A professora, ao realizar um tão católico e profundo exame de consciência, não se percebia menos preconceituosa do que os demais por ter uma conduta mais aberta. Pelo contrário, descobria no seu íntimo o pecado que ainda devia ser extirpado. Não negava ou minimizava o monstro, acreditava nele – e por isso tinha mais condições de vencê-lo.
Existem muitos caminhos objetivos para superar o racismo estrutural. Esse é um tema amplo, para outro artigo. Mas, para superá-lo em nossa subjetividade, temos que seguir o exemplo da velha professora. O racismo pode ser a trave em nosso olho, que não enxergamos enquanto queremos tirar o cisco do olho dos nossos irmãos (cf. Mt 7, 3-5). Permanece como desafio a nossa conversão.
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