Durante o período da baixa Idade Média, houve um frade chamado Guilherme de Ockham († 1347), que suscitou um conceito filosófico cujas consequências deletérias enxergamos até hoje. Tal filosofia é denominada nominalismo.
Segundo esse pensamento, inexiste no universo conceitos abstratos e universais e não há intelecto que tenha o poder de gerar esses conceitos. Ou seja, tudo o que o homem vê é fruto de uma impressão pessoal e não é possível alcançar conceitos universais, até porque estes não existem segundo os nominalistas. Mais tarde, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) vai trabalhar acepções semelhantes, concluindo que não existe verdade. O desenrolar dessa linha de pensamento e de outras vai gerar o que conhecemos hoje como relativismo. Não haveria, segundo os relativistas, verdades universais, mas, sim, realidades relativas. Ora, nunca foi isso o que a filosofia e a teologia tradicionais ensinaram. Pelo contrário, sempre foi tradicionalmente colocado que o que o homem conhece tem certa correspondência, ainda que imperfeita, com o mundo sensível.
Devemos ter em mente que somos seres iluminados pela graça de Deus, portanto podemos tanger realidades universais e metafísicas. É certo que esse tanger ocorre de modo imperfeito, pois Deus é um absoluto infinito, ao contrário do homem que é limitado. Todavia, isso não é demonstração de que o que sabemos seja falso. Uma pessoa pode não conhecer todas a regras e detalhes da gramática portuguesa, mas isso não implica que ela não sabe se comunicar ou se expressar em português; ela sabe, mas não em sua totalidade. Como esse conceito filosófico se aplica à realidade global da pandemia é o que gostaríamos de dispensar breves palavras.
Parece-nos que as pessoas perderam a ideia de que Deus não age a partir de uma arbitrariedade leviana. Deus tem todo o poder de agir no mundo da forma como deseja (e de fato o fez em certas ocasiões excepcionais que chamamos de milagres), mas não quis agir, ordinariamente, de modo milagroso. Dentro do seu infinito amor, Ele implantou no âmago das coisas leis universais, por meio das quais todas as coisas são ordenadas. Os planetas dos sistema solar orbitam o sol e tem uma relação com sua galáxia baseadas em leis da física; o fluir do sangue pelo corpo humano ocorre à partir da direção que o coração imprime a ele. Mas, de repente, diante do sofrimento imposto pela pandemia, bradamos alto querendo que Deus mude todas as regras da biologia e coloque fim a tudo isso em um passe de mágica. Isso não aconteceu em épocas passadas da história em que houve guerra, fome e pestes; seria, no mínimo, inocência acreditar que isso iria acontecer agora. Seria ser um relativista bem ao pé da letra, que acredita que as realidades surgem só porque assim desejamos.
Posto isso, gostaríamos, então, de propor que voltássemos a professar o que a Igreja sempre nos ensinou de forma universal e absoluta. Deus é infinitamente bom e não nos deixa desamparados. Ele vem ao nosso auxílio, iluminando nossas inteligências e convidando-nos a configurar nossa vontade à vontade d’Ele. E por meio do esforço, pessoal e coletivos, achamos caminhos para vencer as dificuldades, não sendo a pandemia e as mazelas que com ela vieram exceções a isso. Assim, por uma atitude sensata de fazer novas todas as coisas, mas por meio do trabalho humano, seremos capazes de superar esse momento de dor.
Lembro-me da passagem das bodas de Caná da Galiléia (cf. Jo 2,1-12), na qual Deus converte a água em vinho. Há de se lembrar que “achavam-se ali seis talhas de pedra para a purificação dos judeus, que continham cada qual duas ou três medidas” (Jo 2,6). Foi utilizando-se de uma realidade cultural judaica que Jesus faz seu milagre, não por meio do “malabarismo” de fazer surgir novas talhas e tonéis de vinhos. De modo semelhante, cabe a nós pensar que, assim como outrora Deus agiu, Ele assim também age hoje. A partir dos meios científicos, culturais e políticos que dispomos, se as iluminarmos pela graça de Deus (de preferência por intercessão da Virgem Maria), teremos o vinho novo, que não será qualquer vinho, mas sim “o melhor vinho” (Jo 2,10).