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Tolkien e a morte: uma reflexão a propósito do dia de Finados

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Francisco Borba Ribeiro Neto - publicado em 06/11/22
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A resposta de Tolkien para o drama da morte é, sem dúvida, fascinante e totalmente cristã. Entenda:

Hoje em dia, é fato relativamente bem reconhecido que a literatura de fantasia do século XX deve muito ao imaginário cristão – particularmente pela contribuição que J.R.R. Tolkien deu ao gênero. Católico fervoroso, suas obras não têm intenção catequética, mas estão impregnadas por uma mentalidade cristã. Seu maior herói, Frodo, o pequeno hobbit, nascido numa terra perdida e depreciada, como a Nazaré bíblica, aparentemente fraco e impotente, irá carregar o mal do mundo (o Anel) e ser, com seu sofrimento, o instrumento para a salvação. A associação a Cristo é inescapável. Sam Gamgee, o fiel companheiro trapalhão de Frodo, por sua vez, representa claramente a figura do santo pecador.

Em seus textos, Tolkien projetou, igualmente, suas inquietações existenciais e reflexões “teológicas” (mesmo que sem nenhuma pretensão de fazer teologia, bom frisar). Viveu um tempo particularmente angustiante, lutou na Primeira Grande Guerra e viu seus filhos lutarem na Segunda, atravessando um entreguerras no qual a experiência de um confronto não deu à humanidade a sabedoria de evitar um outro. O conjunto de sua obra (na qual O hobbit e O Senhor dos Anéis são os textos mais conhecidos) narra a dramática história desse mundo imaginário onde os mais belos e mais poderosos irão sendo continuamente vencidos pelo mal, vítimas de sua própria arrogância e cobiça. Só a pureza do pequeno hobbit e a sabedoria do mago Galdalf, que reconhece na fragilidade a força de um Outro, trarão a vitória definitiva sobre o Mal.

O Dia de Finados e o lançamento mundial de uma nova série de streaming, Os anéis do poder, a mais cara já filmada, baseada na obra de Tolkien, sugerem uma reflexão sobre um dos pontos mais interessantes da “teologia” desse autor: o grande dom de Ilúvatar.

O mundo criado por Tolkien

No imaginário tolkieniano, mitos de outros povos, em particular os nórdicos, são revistos e reinterpretados numa chave de leitura católica. Os textos nos quais essa mitologia é constituída são apresentados em obras não publicadas em vida pelo autor, como O Silmarillion e Contos inacabados. Nessas obras, Ilúvatar é o deus criador, onipotente e aparentemente (mas só aparentemente) distante de tudo que acontece no mundo. Os Valar, deuses menores que frequentemente se confundem com a imagem dos anjos cristãos, são seus representantes para a guarda da Criação. O mal entrou no mundo por obra de um Valar decaído, Melkor ou Morgoth – imagem evidente de Lúcifer, que será substituído por Sauron, o grande antagonista de O Senhor dos Anéis. Duas raças, ambas criadas por Ilúvatar, disputam entre si a hegemonia no mundo (a chamada Terra Média): os elfos, os primogênitos, belos, poderosos e imortais, e os homens, os filhos “mais novos”, fracos, contraditórios e destinados a morrer.

Ao longo das eras dessa Terra Média, vamos conhecendo o destino cruel dos elfos. Por mais belos e sábios que sejam, acabam sempre sendo vencidos por se tornarem arrogantes e cobiçosos. Os homens, por sua vez, seres ignóbeis que raras vezes demonstram honra e dignidade, em sua fraqueza e contradição são frequentemente arrastados para o mal. Contudo, e aqui está o centro desse artigo, Ilúvatar lhes concedeu um presente paradoxal, que desperta simultaneamente desprezo e inveja de seus irmãos elfos. Aos homens foi concedido o dom maravilhoso da morte.

Como a morte pode ser um dom maravilhoso? Não seriam os seres mortais que deveriam invejar a imortalidade dos elfos? De fato, a morte na mitologia de Tolkien ocupa esse lugar contraditório e escandaloso. Os mortais invejam a vida eterna dos imortais, mas também os imortais invejam o dom da morte dado aos mortais. Vivendo num tempo marcado pela morte aparentemente injusta e sem sentido nos campos da guerra, compreende-se que Tolkien tenha tido que dar uma resposta à grande pergunta: pode existir um Deus bom que permita a morte indevida de tantos seres humanos?

O dom do qual se tem medo

A resposta de Tolkien para o drama da morte é, sem dúvida, fascinante e totalmente cristã: a morte é um dom, pois por meio dela os seres humanos poderão encontrar ao Criador, que os ama tanto e pelo qual eles tanto anseiam. Nesta perspectiva, os homens têm medo de morrer porque, para os vivos, a convivência com Ilúvatar, após a morte, é inevitavelmente um mistério. Nem mesmo os Valar sabem exatamente como se dará... O Tentador, sabendo disso, insinuou-se na mente dos seres humanos, aproveitando-se de seu medo diante do desconhecido, para fazer com que temessem a morte – e assim se afastassem de Deus e de seu grande dom de amor.

A maior função das religiões – e isso vale para todas – é nos ajudar a superar o medo da morte. A grande maioria delas apresenta, de uma forma ou de outra, essa grande intuição que a morte é a possibilidade de encontrarmo-nos com a divindade. Nem todas, contudo, pensam essa divindade como um Deus de amor. Muitas, mesmo reconhecendo o amor de Deus, consideram a possibilidade de encontrá-lo muito difícil, exigindo uma série de esforços e sacrifícios nessa vida. No próprio cristianismo muitas vezes o medo do inferno parece maior do que a esperança na salvação.

Um sacerdote italiano, que foi missionário no Brasil por muito tempo, padre Luigi Valentini, já idoso, falando sobre a própria morte, dizia que agora se aproximava o momento em que finalmente iria encontrar o grande amor ao qual havia dedicado toda sua vida. Essa deveria ser a maneira, cheia de esperança, pela qual todos nós deveríamos nos aproximar do momento da própria morte. Também deveria ser o sentimento com o qual pensamos em nossos falecidos.

Oxalá o dom maravilhoso do encontro com o Pai ilumine a nossa vida e nos ajude a viver com alegria e comprometidos com o bem.

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