Na semana passada um restaurante e diversos bares paulistanos foram notícia pela retirada do prato estrogonofe e do coquetel Moscow Mule, respectivamente, de seus cardápios. As medidas, ao meu ver precipitadas e sensacionalistas, visam efetuar o cancelamento da Rússia neste momento de invasão da Ucrânia, mas acabam apagando apenas a cultura e a tradição de um povo cuja história não pode ser resumida ao autocrata Vladimir Putin.
Os estabelecimentos paulistanos pegaram carona em uma série de cancelamentos de russos que já havia sido iniciada na Europa, como do escritor Fiódor Dostoiévski (1821-1981), um dos maiores gênios literários de todos os tempos. O autor de clássicos como Crime e Castigo e Os Irmãos Karamázov seria tema de um festival de música e literatura na cidade de Gênova, no norte da Itália, que, após a invasão de Putin, teve sua programação suspensa.
O mesmo quase ocorreu na universidade Milão-Bicocca, no mesmo país, que chegou a cancelar um curso sobre o autor russo, mas depois voltou atrás. Estrogonofe, Moscou Mule, vodka, as obras de Dostoiévski entre de outros grandes autores russos como Tolstói, Turguêniev e Gontcharov; as sinfonias de Tchaikovsky, Rachmaninoff e Gretchaninoff; os filmes do mestre Tarkovski: há séculos o mundo ocidental como um todo se beneficia do patrimônio cultural da Rússia. E Putin não tem envergadura para competir por importância com tamanho legado.
Compaixão
Nesta semana, a editora do noticiário do horário nobre na emissora Channel One Russia, uma estatal sediada em Moscou e alinhada ao discurso do Kremlin, se infiltrou atrás do âncora que apresentava o jornal da noite segurando uma placa com dizeres como: "Não acredite na propaganda", "eles estão mentindo para você" e "Pare a Guerra".
A transmissão foi tirada do ar e a corajosa editora, chamada Marina Ovsyannikova, pode enfrentar 15 anos de prisão por se opor à Guerra de Putin. Ou seja, a população não só não recebe as devidas informações sobre o que se passa e provocou a guerra, como é tolhida de protestar e pode ser encarcerada caso se rebele. A população russa, que agora começa a sentir no bolso e na mesa os efeitos de tantas (e necessárias) sanções econômicas de diversos países, também é vítima deste ataque descabido.
Paz
Com a nossa cultura composta por tantos filmes de Hollywood, inclusive de guerra, é tentador escolher um lado e torcer por ele, o "mocinho" da história. Na vida real, entretanto, devemos ter em mente de que são pessoas e não bonecos nas linhas de frente, de um lado ou do outro, e que polarizações nos levam a esquecer disso. Que a população russa não tem responsabilidade pelas ações de seu líder, mas já está pagando um preço alto cujo ônus, com o passar do tempo, só deve aumentar.
Conflitos armados geralmente acontecem por motivos individuais e escusos dos líderes de determinados povos, sem que os motivos reais muitas vezes cheguem ao conhecimento do público. Por isso não se toma um lado, independente da narrativa criada. No contexto de guerra, a única torcida deve ser pela paz.