Quando o Papa Emérito Bento XVI, aos 93 anos de idade, deixou as muralhas do Vaticano em 18 de Junho de 2020 para ir a Regensburg visitar e despedir-se do seu irmão mais velho, Georg Ratzinger, os que o conhecem bem não ficaram nada surpreendidos. Mais uma vez, com um gesto simples, ele mostrou o que era importante na sua vida. Outros gestos, tão poderosos como discretos e muitas vezes silenciosos, marcaram o seu pontificado ao revelarem a sua personalidade. O seu fio condutor comum? O amor a Deus e ao próximo:
1. TERNURA
Enquanto a imagem de cardeal ainda o seguia vários meses após a sua eleição a 19 de Abril de 2005, o Papa Bento XVI surpreendeu a todos ao publicar a sua primeira encíclica no dia de Natal, 25 de Dezembro de 2005. Esta encíclica não é sobre dogma ou liturgia, mas sobre o amor. Deus caritas est não é uma conferência do chefe da Igreja, mas uma terna meditação espiritual e filosófica sobre o tema do amor humano. "Viver por amor e assim deixar a luz de Deus entrar no mundo é o que eu gostaria de encorajar com esta encíclica", diz o Papa no documento.
2. CONFIANÇA
A 2 de Abril de 2005, milhares de jovens rezaram na Praça de São Pedro em Roma, ouvindo que João Paulo II estava a viver os seus últimos momentos. Ao ouvir os seus gritos do seu leito de morte, deu-lhes as suas últimas palavras: "Tenho andado à vossa procura e agora viestes até mim e agradeço-vos". João Paulo II morreu alguns meses antes da Jornada Mundial da Juventude em Colónia, agendada para 16 de Agosto. O seu sucessor, Bento XVI, que é tímido por natureza e mais habituado às salas de conferência do que às praças cheias de jovens, confirmou no entanto o evento por fidelidade e "na continuidade da obra de João Paulo II". Aquela foi a sua primeira viagem papal. A alquimia funcionou: com o seu estilo recolhido, Bento XVI entrou imediatamente em "amizade" com os jovens de todo o mundo, com o mesmo espírito de fidelidade.
3. FRATERNIDADE
Sessenta anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, o Papa alemão fez um gesto fraterno histórico quando visitou a sinagoga mais antiga da Alemanha, em Colónia, a 19 de Agosto de 2005. Ao condenar o "crime inédito" da Shoah e ao rezar pelas vítimas do "nazismo", declarou o seu desejo de aproximação entre cristãos e judeus contra as "forças do mal". O Papa segue assim os passos de João Paulo II: em 1986, este último visitou uma sinagoga em Roma para testemunhar o desejo da Igreja Católica de reconciliação com a comunidade judaica. Nenhum outro papa visitou tantas sinagogas: após Colónia em 2005 e Nova Iorque em 2008, Bento XVI visitaria a sinagoga em Roma em 2010.
4. O PODER DA ALMA
"Senhor, tu és o Deus da paz…", Bento XVI começa a sua oração em alemão, a sua língua materna, perante o memorial dos blocos de pedra do campo nazista de Auschwitz-Birkenau. Um gesto de apelo à reconciliação que deseja realizar "sobretudo como católico" e "como filho do povo alemão". No momento da sua oração, um arco-íris apareceu no céu. "Fiquei muito consolado com o aparecimento de um arco-íris no céu, quando, num gesto de Jó, clamei a Deus diante do horror deste lugar, no horror da aparente ausência de Deus, e ao mesmo tempo na convicção de que Ele não cessa, mesmo no Seu silêncio, de estar e permanecer conosco", disse ele, concluindo assim a sua viagem à Polónia.
5. O SIGNIFICADO DA FAMÍLIA
Jornalistas acreditados junto da Santa Sé notaram-no desde os primeiros dias do seu pontificado e repararam que ele usava sempre o mesmo relógio. Curiosos, eles verificaram com o seu biógrafo que era um relógio que pertenceu a Maria Ratzinger, a amada irmã do Papa, que morreu em 1991. Maria era a mais velha dos irmãos Ratzinger. Desde criança, ela cuidou muito bem do seu irmão mais novo, e quando ele foi nomeado Cardeal, ela tornou-se a sua governanta na Cúria. A 2 de Novembro de 1991, no seu gesto habitual de visitar o túmulo dos seus pais, ela morreu inesperadamente. Desde então, como gesto de recordação e amor pela sua irmã, Bento XVI leva consigo o seu relógio a todo o momento.
6. AMIZADE ESPIRITUAL
Sabendo que o seu irmão Georg Ratzinger estava a viver os seus últimos dias, Bento XVI fez-lhe uma última visita de 18 a 22 de Junho de 2020. No dia 19 de Junho, na solenidade do Sagrado Coração de Jesus, os dois irmãos celebraram juntos a Missa na casa do irmão. Este morreu alguns dias mais tarde e foi enterrado a 8 de Julho em Regensburg, Alemanha. Embora Bento XVI não tenha podido participar do funeral, a sua proximidade com o seu irmão mais velho - com três anos de diferença - não foi posta em dúvida. Os dois irmãos, ordenados sacerdotes no mesmo dia, 29 de Junho de 1951, permaneceram muito próximos ao longo das suas vidas. Como o atual Arcebispo de Regensburg, Rudolf Voderholzer, recordou, os dois irmãos viram-se nove vezes nos poucos dias que passaram juntos. "Havia poucas palavras, muitos gestos de ternura e sobretudo orações ditas em conjunto", disse ele à imprensa alemã.
7. SENSIBILIDADE ARTÍSTICA
O piano sempre foi o passatempo preferido de Bento XVI. O Pontífice gosta particularmente de tocar Mozart. "Um carinho especial liga-me a este músico supremo. Sempre que ouço a sua música, não posso deixar de me lembrar da minha igreja paroquial, quando criança, em dias de festa, a sua Missa ressoava: senti no meu coração que um raio de beleza do Céu me tinha alcançado, e sinto sempre essa sensação", declarou a 7 de Setembro de 2010 por ocasião de um concerto dado em sua honra em Castel Gandolfo. Bento XVI também gosta de tocar outras peças, como em Les Combes, na região norte do Vale de Aosta, a 16 de Julho de 2006, durante as suas férias de Verão, onde até improvisou jazz.
8. HUMILDADE
A 11 de Fevereiro de 2013, num movimento praticamente sem precedentes na história, Bento XVI surpreendeu o mundo inteiro ao anunciar a sua renúncia à cátedra de Pedro. Em total liberdade, decidiu terminar o seu pontificado, enquanto que até então isso tinha se dado com a morte do Papa. Um acontecimento histórico que deixou muitas perguntas. "Demasiado cansado, por isso deixei o ministério petrino", respondeu ele numa entrevista ao La Repubblica três anos mais tarde, na quarta-feira 24 de Agosto de 2016. Obviamente era o envelhecimento: "Em 2013, haveria muitos compromissos, incluindo a JMJ no Rio de Janeiro, que eu já não pensava poder cumprir", acrescentou, explicando que a sua renúncia era apenas um gesto de humildade e responsabilidade.
9. SIMPLICIDADE
Tal como a sua partida após renunciar à cátedra de Pedro a 28 de Fevereiro de 2013, o seu aniversário não é objeto de qualquer cerimónia. Janta, cumprimenta o pessoal de serviço da maneira mais normal e depois retira-se para a capela para rezar - a sua simplicidade é visível em todas as situações. A única exceção foi no seu 90º aniversário, a 17 de Abril de 2017, quando celebrou com um pequeno círculo de amigos, incluindo o seu irmão Georg, tomando uma cerveja. "Estou consciente dos limites da minha pessoa e das minhas capacidades", disse ele no primeiro dia do seu pontificado, acrescentando que queria cumprir a sua missão "com a ajuda da Igreja e do povo".
10. DISCRIÇÃO
"A sua forma de viver os seus últimos anos corresponde ao que tinha anunciado: desde a sua renúncia, Bento XVI tem vivido o seu serviço de acompanhamento da vida da Igreja e de solidariedade com o seu sucessor em oração e com extrema discrição". Isto foi declarado pelo Padre Lombardi Federico, o seu antigo porta-voz, numa entrevista à Rádio Vaticano em 2017. Bento XVI leva uma vida monástica e nunca deixa o Vaticano. A única excepção (para além de uma visita ao seu irmão doente na Alemanha) foi uma viagem a Castel Gandolfo, a residência papal de Verão, a 25 de Julho de 2019, onde rezou o terço nos caminhos dos seus jardins.